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A vida da atriz Kely Nascimento mudou para sempre em 2003, quando seu marido, o ator Norton Nascimento, sofreu um aneurisma da aorta e precisou de um transplante de coração. Aos 26 anos, recém-casada, ela se viu diante da realidade dura da fila de transplantes no Brasil.

“De repente, eu me vi torcendo para alguém morrer para o meu marido viver. Foi um choque, mas também um aprendizado enorme.” Kely Nascimento, a VivaBem

O coração chegou após quatro dias em que Norton passou ligado a máquinas, em um caso inédito até então. O ator ganhou mais quatro anos de vida. E a experiência transformou o casal em ativistas.

Pouco antes da morte de Norton —em 2007, em decorrência da hepatite C—, eles escreveram juntos uma peça que tratava com humor da doação de órgãos, chamada “Começar Outra Vez”. Após a perda, Kely reestreou o espetáculo como homenagem e nunca mais deixou de levar o tema adiante.

A militância se tornou missão de vida. Ela criou o Instituto Renascimento, rodou o país com espetáculos e filmes, participou de palestras em escolas, empresas e penitenciárias. “A arte educa pelo coração. É mais fácil falar de doação de órgãos quando você cria uma história que toca.”

Duas décadas depois daquela experiência com Norton, Kely deu um passo ainda mais radical: tornou-se doadora em vida. Em abril de 2024, aos 50 anos, retirou um dos rins para salvar um homem que nunca tinha visto antes. Cristã, ela diz que sua ação é inspirada em Jesus: “Se ele [Jesus] deu a vida toda, o que é eu dar um rim?”

O rim para um desconhecido

O encontro que mudaria tudo aconteceu em um café, em Campinas. Kely conhecia de vista uma assistente social de uma ONG voltada para doenças raras. Ao se reencontrarem, descobriu que o marido dela estava em hemodiálise e hesitava em entrar na fila de transplante.

“No meio da conversa, perguntei qual era o sangue dele. Quando ela disse que era A positivo, respondi: o meu também. Se a médica aceitar e eu for compatível, eu dou.”

A frase saiu como algo corriqueiro, mas carregava um peso imenso. “Parecia que eu estava oferecendo meu carro para alguém usar. Foi tão natural para mim, mas a reação deles foi de espanto”

Kely Nascimento logo após a cirurgia de transplante
Imagem: Arquivo pessoal

Naquele mesmo dia, Kely deixou o hospital emocionada. “Eu saí chorando, pensando: meu Deus, eu vou doar mesmo. Parecia um sonho antigo que finalmente ia se realizar.”

Para Kely, foi algo muito natural. Afinal, ela vinha de anos de conscientização sobre transplantes, uma vida dedicada a este e outros assuntos de saúde.

“Foi muito orgânico, sem demagogia, sem nada. Simplesmente a vontade de ajudar saiu de dentro de mim.”

Logo após, vieram meses de exames de compatibilidade, avaliações médicas e psicológicas, parecer de comitês de ética e, por fim, a autorização judicial exigida para casos em que não há parentesco.

Em abril de 2024, a cirurgia aconteceu. O receptor passou a urinar logo após o transplante, enquanto Kely enfrentava um pós-operatório difícil.

“Colocam um gás na barriga que demora dias para o corpo absorver. Passei quatro noites pensando: ‘para que fui inventar isso?’. Eu brinco que pari um rim. Foi uma cesárea da vida. Doaria de novo, mesmo sabendo como é o pós-operatório.” Kely

A repercussão entre família e amigos

A decisão de doar para um desconhecido não foi compreendida de imediato. A irmã de Kely, um ano mais nova, passou um mês sem falar com ela. “Foi a forma de ela demonstrar medo. Cada um reage de um jeito, mas foi muito duro”, admite.

O namorado da época, hoje marido, também sofreu com a distância. “Ele me ligava por vídeo do hospital, pedindo: promete que vai sair daí, promete que vai dar tudo certo. Era começo de amor, e eu já estava me metendo em uma cirurgia enorme.”

Amigos próximos questionavam a escolha: “Muita gente dizia: ‘se fosse para o meu filho, eu faria. Mas para um desconhecido, não sei se teria coragem'”.

Do outro lado, a esposa do receptor não poupava carinho. “Ela me levava bolo escondido no hospital, mesmo quando não podia. Dizia: não quero que você sinta dor. Esse cuidado me marcou muito.”

No fim, Kely enxerga que ganhou muito mais do que entregou. “Eu doei um rim para um desconhecido e ganhei um irmão, uma família toda. Hoje somos ligados por algo muito maior que sangue.”

Do palco às ruas: o legado do Instituto Renascimento

O Instituto Renascimento, por meio de peças, filmes e oficinas, aborda temas como doação de órgãos, doenças raras, saúde mental e violência doméstica.

Entre os projetos recentes estão uma peça sobre HIV voltada para idosos e uma produção infantil sobre leucemia em parceria com a Turma da Mônica. Em setembro, Kely lança o curta “Quando Seus Olhos Encontram os Meus”, sobre doenças raras, dirigido por Bruno Kott, que poderá ser assistido gratuitamente como parte de seu projeto com o instituto.

Kely e Norton Nascimento no espetáculo “Começar Outra Vez”
Imagem: Divulgação

“Doar é um exercício diário. Nem todo mundo precisa doar um rim, mas pode compartilhar uma causa, oferecer ajuda, levar comida a quem precisa. O importante é se colocar no lugar do outro.”

Kely Nascimento

Como funciona a doação de rim em vida

  • É necessário ter compatibilidade genética. De acordo com Luiz Gustavo Modelli, médico nefrologista responsável pelo Serviço de Transplantes do Hospital da Unesp e diretor da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), o processo começa com exames de sangue. Doador e receptor precisam ter o mesmo tipo sanguíneo (sistema ABO) e passar por testes genéticos, como o HLA (Antígeno Leucocitário Humano). O exame mais decisivo é a “prova cruzada”: ele mistura células do doador com o soro do receptor. Se houver reação, o transplante não pode ser feito.

 

  • Depois disso, é necessária uma autorização judicial para não aparentados. No Brasil, a lei permite doações em vida entre parentes até o 4º grau ou cônjuges. Para casos como o de Kely, é preciso autorização de um juiz. O processo envolve laudos médicos e psicológicos, pareceres de comitês de ética hospitalar e a comprovação de que não existe interesse financeiro, explica Modelli.

 

  • Técnica de cirurgia mais comum é a videolaparoscopia —como a de Kely. De acordo com Modelli, ela utiliza pequenos cortes para liberar o rim e uma incisão maior, semelhante à cesárea, para retirá-lo. Enquanto isso, outra equipe prepara o receptor, de modo que o implante ocorra quase simultaneamente.

 

  • Doador pode apresentar fortes dores nos primeiros dias do pós-operatório. Modelli conta que a presença de gás carbônico no abdome pode causar dores intensas nos primeiros dias, além da cicatrização das incisões. Apesar do desconforto, a maioria dos doadores recebe alta em poucos dias e retoma a rotina em poucas semanas.

 

  • Corpo compensa a ausência do segundo rim. De acordo com o nefrologista, a função renal total costuma cair entre 25% e 35%, mas a pessoa pode viver normalmente. São recomendados hidratação constante, consultas médicas regulares, controle de peso e pressão arterial, além de evitar uso frequente de anti-inflamatórios. Mulheres podem engravidar após a doação, mas é necessário acompanhamento médico.

 

Fonte: Viva Bem uol

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