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Por que decidi doar meu rim a um amigo e quais perguntas tive de responder

O artista Thiago Amaral, 42, doou um rim para o amigo, o também artista Vinícius Calderoni, 40. A cirurgia ocorreu em fevereiro no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, depois de longos meses de exames, conversas e espera por uma decisão judicial.

A doação foi feita após o ex-marido de Thiago, Sebastião Braga, morrer de leucemia. Durante o tratamento, Tião passou por um transplante de medula, se submeteu a uma terapia experimental nos EUA, mas não resistiu. Doar o rim para um amigo que precisava do transplante foi uma forma de “vingar a vida”, segundo Amaral.

A VivaBem, ele conta sua história.

O diagnóstico

“Vinícius é diretor de uma companhia de teatro e acompanhávamos o trabalho um do outro. Em 2018, ele me chamou para fazer uma peça que estava dirigindo. Depois da pandemia, nessas conversas de rotina, de camarim, de viagens, nossa amizade se estreitou.

Foi quando ele disse que tinha sido diagnosticado com uma doença crônica, relativamente grave, que se chama síndrome de Alport, e que em algum momento ele precisaria de um transplante de rim.

Essa notícia veio de forma muito forte: naquele momento eu estava vivendo uma luta contra o câncer do meu marido, Sebastião. Meu marido passou a pandemia com leucemia, já tinha passado por um transplante e se submeteria a um segundo.

Perguntei o que era preciso para ser doador, e o Vinicius disse que, primeiro, tínhamos de ter o sangue compatível. E eu sou doador universal, tenho sangue tipo O negativo.

O ‘sim’ de Thiago

A possibilidade ficou no plano das ideias por alguns meses, com uma sinalização minha e de uma amiga nossa, a Xaxá.

Em agosto de 2024, um amigo nos contou uma história sobre o avô dele, que sofria de uma doença renal e faleceu. Na hora, senti a atmosfera mudar. Virou uma chavinha e me lembrei da conversa com o Vinícius.

No dia seguinte, mandei uma mensagem perguntando como estava a situação e ele respondeu dizendo que realmente precisaria do transplante. Eu e a Xaxá respondemos que aceitávamos, e ele nos colocou em contato com a equipe.

Tive uma primeira conversa com o médico e ele me explicou tudo o que aquela decisão acarretaria. Perguntei sobre riscos, falei sobre meus medos.

“Sentia que meu corpo estava pronto, parece que eu precisava fazer este gesto, ir até onde dava”.

Se eu não fosse compatível, faria uma campanha para achar um rim para o Vinícius. Disse ‘sim’ para o médico e começou a jornada. Minha mãe me apoiou, achou um gesto nobre. Meu pai não me apoiou, mas eu fui muito convicto.

‘E se vocês brigarem?’

Tive de lidar com muitos medos das outras pessoas e estar firme na minha decisão, naquilo que eu queria fazer. Passei por uma bateria de exames, mais de 70, que levou um pouco mais de três meses.

Quando chegou no exame da prova cruzada, que avalia o risco de rejeição, foi uma virada. Caiu a ficha: serei eu [o exame indicou que o rim de Thiago era indicado para o transplante].

Em uma parte do processo, de apoio ao doador, a psicóloga foi muito incisiva e me colocou em xeque. Perguntou quem eu era, de onde eu conhecia o Vinícius, se tínhamos uma relação amorosa, se tínhamos relações financeiras.

Ela perguntou: ‘e se vocês brigarem?’ E eu respondi: ‘não, não vai acontecer’. Ela repetiu: ‘e se vocês brigarem?’ E eu rebati: ‘não quero nem pensar nisso’. E ela insistiu: ‘e se vocês brigarem?’

Ela disse que não é incomum, entre pessoas da mesma família, quando a decisão não está bem esclarecida —depois de alguns anos acontece uma cobrança ou chantagem. ‘Como você não pode me emprestar dinheiro? Eu te doei um rim!’

Eu trabalho isso muito forte na terapia. Um termo que veio para mim, no processo, foi neutralidade. A neutralidade do gesto. Fiz com a convicção de que é sem nada em troca.

E sem nenhuma expectativa do que isso poderia virar. Inclusive, sobre a possibilidade de o transplante não dar certo. Eu tive de entender que, se acontecesse, eu não poderia me sentir culpado.

A cirurgia

Só na reta final que eu li coisas que me deram medo. Compartilhei com o médico e ele falou que era igual ler bula de remédio: são coisas que eu não queria saber. Tive medo de ficar acamado, de sentir dores por um ano.

Depois, entramos na Justiça para pedir autorização para o transplante. Isso demorou, saiu aos 45 minutos do segundo tempo. O corpo do Vinícius já estava muito fraco. Na semana antes da cirurgia, a gente foi a uma consulta e o médico o internou para hemodiálise.

A cirurgia aconteceu no dia 28 de fevereiro de 2025, no Hospital Albert Einstein.

Deu tudo certo, mas eu tive uma dor gigantesca, a maior que já senti. Tomei morfina e cetamina, delirei de dor e vi as paredes derreterem. Três dias depois, tive alta.

Ainda no hospital, reencontrei o Vinícius. Nossas famílias estavam juntas, minha mãe e meu atual marido, e me levaram para vê-lo, em outro andar. Foi um momento muito delicado, muito amoroso.

Foi uma alegria ver o Vinícius voltar a ter apetite, podendo comer de tudo novamente. Ele estava com uma restrição alimentar muito rígida. Na sua primeira vez no banheiro, foram nove litros de xixi. Um xixi compartilhado, que era também meu.

‘Tudo valeu a pena’

Saí do hospital muito emocionado. O encontro com a mãe do Vinícius foi muito forte. Antes da cirurgia, quando ele estava internado, ela me deu um abraço muito forte e emocionado. Naquele momento, toda a epopeia valeu a pena. Todos os exames e consultas pareceram muito pequenos.

Já tinha vivido isso na pele com o Tião. Na época, acompanhei uma mãe passando por essa angústia da espera, de achar uma medula compatível para o transplante.

Eu e o Vinícius somos dois filhos únicos. Era uma sensação muito acolhedora de amor, de força, de que a família de estendeu. Não era só eu e ele, era a história de um rim. Era o nosso rim.

‘Queria vingar a vida’

Com o Tião, entendi o amor em uma outra dimensão. Quando veio a doença dele [Tião], entrei nesse lugar de entrega. Banquei a batalha como minha também. Com a morte dele, se abriu um buraco dentro de mim.

Tive de conviver com esse medo e curá-lo de alguma forma. Parece que tudo isso [a possibilidade de doação do rim] me veio com um desejo de vingança, de vingar a morte. Transmutei de várias maneiras, até elaborar que o que eu queria era vingar a vida. Quando surgiu essa oportunidade, de alguém próximo precisando, correndo risco, eu estava pronto.

Estou tendo dimensão do ato agora. Sabia que um amigo voltaria a viver e que o gesto teria impacto nas pessoas ao redor dele. O Vinícius tinha acabado de saber que seria pai.

Mais do que nunca, quero falar sobre isso para as pessoas. Conscientizar que é possível ser um doador e viver bem. Nosso corpo é muito inteligente”.

Doação de órgãos em vida

Quem pode doar órgãos em vida? Qualquer pessoa capaz, desde que a doação não comprometa as aptidões vitais do doador. No caso de doação de medula óssea, uma pessoa juridicamente incapaz pode fazer a doação desde que haja consentimento de ambos os pais e autorização judicial e desde que o ato não ofereça risco à saúde.

Quais órgãos podem ser doados? Uma pessoa pode doar, em vida, um dos rins, parte do fígado, medula ou parte dos pulmões. Para fazer o procedimento, são verificadas diversas condições, como a compatibilidade entre o doador e o receptor.

Precisa de autorização judicial? Pela legislação, parentes até o quarto grau, companheiros e cônjuges podem ser doadores. Já a doação de órgãos de pessoa vivas que não são parentes ou cônjuges, como o caso de Thiago e Vinícius, só acontece mediante autorização judicial (casos de doação de medula não exigem aval judicial).

Fonte: Vai Bem Uol

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