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Cientistas avançam em fazer rins de porco funcionarem em humanos

Pesquisadores da Universidade de Nova York alcançam avanço significativo no xenotransplante, oferecendo esperança para milhares de pacientes na fila por transplante

Médicos da Universidade de Nova York afirmam que dois novos estudos mostram um avanço significativo para tornar os transplantes de rim entre espécies uma opção real em um futuro próximo.

Cientistas têm buscado há anos uma alternativa aos transplantes humanos, pois a oferta de doadores não consegue acompanhar a demanda, especialmente no caso dos rins.

Mais de 90 mil pessoas nos Estados Unidos aguardam por um transplante de rim, e cerca de 11 delas morrem diariamente, segundo a UNOS, organização sem fins lucrativos que gerencia o sistema nacional de doação de órgãos. Com o envelhecimento da população e o aumento de condições como diabetes, pressão alta e obesidade, essa necessidade tende apenas a crescer.

A diálise pode manter viva uma pessoa com doença renal em estágio terminal, mas o processo pode ser agressivo para o corpo e, em média, consegue sustentar alguém por apenas cerca de cinco anos.

Na busca por uma alternativa, cientistas têm se voltado para transplantes de órgãos entre espécies diferentes, chamados de xenotransplante.

Um dos maiores obstáculos a serem superados é a tendência do corpo em rejeitar um transplante de órgão. Novos estudos publicados quinta-feira (13) na revista Nature oferecem mais informações sobre como prevenir que o corpo rejeite o rim de porco, e os pesquisadores afirmam acreditar que obtiveram um avanço na compreensão de como o sistema imunológico lida com esse tipo de transplante.

A questão da rejeição

sistema imunológico humano protege o corpo contra ameaças como fungos ou bactérias, mas às vezes pode ser um pouco superprotetor.

O sistema imunológico não consegue distinguir entre um corpo estranho nocivo que entra no organismo, como um vírus, e um benéfico, como um órgão doado. Quando qualquer um deles é introduzido, o sistema imunológico entra em modo de proteção total, enviando anticorpos para atacar o que identifica como problema. Esses anticorpos podem danificar o órgão doado e, por fim, fazer com que um transplante falhe.

Mesmo com transplantes entre humanos, a rejeição é uma grande preocupação. Durante toda a vida, os receptores precisam tomar medicamentos imunossupressores potentes que suprimem o sistema imunológico. Quando o doador é um porco, cientistas também alteram geneticamente o órgão para torná-lo mais compatível com o corpo humano.

Os novos estudos buscaram examinar da forma mais detalhada possível como o corpo humano rejeita um órgão de porco.

Médicos da NYU transplantaram um órgão de um porco geneticamente modificado em uma pessoa com morte cerebral: Maurice Miller, 57 anos, que faleceu devido a uma massa cerebral em julho de 2023.

Os médicos relataram que Miller sempre quis doar seus órgãos, mas não pôde fazê-lo por ter câncer. Em vez disso, pediram à família de Miller que doasse seu corpo inteiro para pesquisa.

Os pesquisadores acreditavam que um transplante de órgão em uma pessoa com morte cerebral permitiria testar amostras de tecido e sangue de maneiras que seriam muito invasivas em um receptor vivo ou mesmo em um primata não humano, explicou o coautor do estudo, Robert Montgomery, chefe do Instituto de Transplantes da Universidade de Nova York Langone.

“Este falecido pode ser o ser humano mais extensivamente estudado da história”, afirma Montgomery sobre Miller.

Os médicos removeram os rins de Miller e transplantaram um rim geneticamente modificado de um porco especialmente criado pela empresa de biotecnologia Revivicor. O corpo de Miller foi mantido vivo com ventilação mecânica na UTI por dois meses. Durante esse período, os médicos realizaram biópsias regulares do rim, monitoraram seu sangue e testaram outras amostras de tecido.

Houve dois episódios em que o corpo de Miller tentou rejeitar o rim de porco, mas pela primeira vez na história do xenotransplante, segundo Montgomery, eles obtiveram sucesso com medicamentos disponíveis contra rejeição, e o órgão continuou funcionando. Eles interromperam o experimento no dia 61.

Esta parte do trabalho, explicou Montgomery, ajudará os médicos a entender melhor quais medicamentos imunossupressores funcionariam melhor em outras pessoas que receberem órgãos de porco.

“Isso também nos dará uma sensação de alívio ao avançar nos ensaios clínicos em que estamos no meio agora, para saber que quando você coloca um rim de porco em um humano, do ponto de vista fisiológico, ele simplesmente funciona”, diz Montgomery. “O rim é capaz de fazer a maioria das coisas que um rim humano pode fazer, e para as coisas que não faz, ou temos redundância e não necessariamente precisamos, ou há alguns medicamentos que precisamos suplementar. Mas fora isso, estamos prontos para seguir adiante.”

A nova pesquisa, segundo ele, “nos aproxima significativamente de transplantes seguros de órgãos de porcos para humanos.”

Criando um mapa detalhado

Durante os episódios em que o corpo de Miller começou a rejeitar o órgão, os médicos conseguiram criar um mapa detalhado de exatamente como seu sistema imunológico reagiu ao órgão do porco e identificar as vias que o corpo estava usando para rejeitá-lo. Eles também conseguiram mapear a genômica associada a essas vias, mapeando 5.100 genes expressos de porcos e humanos e identificando cada célula imunológica no corpo para rastrear o comportamento imune neste nível excepcionalmente detalhado.

“Nós realmente conseguimos destrinchar o que aconteceu quase diariamente”, afirma o coautor do estudo, Brendan Keating, membro do corpo docente do Departamento de Cirurgia da Escola de Medicina NYU Grossman e do Instituto de Transplantes NYU Langone.

Eles também puderam observar as diferenças na reação imunológica a um órgão de porco em comparação com o que acontece com um órgão humano transplantado.

Os pesquisadores afirmaram ter identificado biomarcadores no sangue que eventualmente poderão ser usados para detectar a rejeição do órgão muito mais cedo, antes que danos possam ocorrer.

Embora o estudo seja um grande avanço, Montgomery diz que envolveu apenas uma pessoa, então os resultados precisarão ser replicados em outros pacientes para ver se as reações são consistentes. Os pesquisadores acabaram de receber financiamento para testar técnicas de imunossupressão em mais 20 pacientes, segundo ele.

“Estamos melhorando nisso”

Apenas no último ano, cientistas fizeram enormes progressos na compreensão de como funcionam os transplantes de rim de porco.

O sucesso mais notável envolveu o caso de Tim Andrews, de New Hampshire, a quarta pessoa viva nos Estados Unidos a receber um rim de um porco geneticamente modificado.

Andrews estabeleceu um recorde quando seu rim de porco continuou funcionando por 271 dias. Os médicos tiveram que remover o órgão no final de outubro, após notarem um declínio na função. Mas antes disso, o transplante funcionou tão bem que Andrews conseguia fazer longas caminhadas e até lançar a primeira bola em um jogo do Boston Red Sox.

O tipo de pesquisa encontrado nos novos estudos é importante para a área, segundo Minnie Sarwal, codiretora do Programa de Transplante de Rim e Pâncreas da Universidade da Califórnia em São Francisco.

“Sessenta e um dias de função renal estável é uma prova de conceito inédita, e acredito que confirma que rins de porcos geneticamente modificados podem manter função fisiológica na circulação humana”, diz Sarwal, que não participou da nova pesquisa. “Como primeiro passo, a prova de conceito é claramente muito importante, pois está preenchendo a lacuna entre o que trabalhávamos anteriormente com modelos pré-clínicos de curta duração, e agora conseguimos alcançar uma verdadeira viabilidade clínica, mesmo que não seja a longo prazo. Mas 61 dias é melhor do que, digamos, horas ou alguns dias.”

Sarwal, que se concentra em inovações terapêuticas para o desenvolvimento de medicamentos imunossupressores, afirma que os novos estudos também demonstraram que a rejeição era tratável.

“Essa parte não é revolucionária, mas acho muito reconfortante saber que nossos tratamentos atuais funcionariam nesse modelo, como esperávamos, mas é ótimo ter essa confirmação”, diz.

O mapeamento da reação imunológica pode fornecer aos pesquisadores outros “pontos de controle moleculares medicáveis” para que possam desenvolver melhores opções de imunossupressão para receptores de transplantes, segundo Sarwal.

Montgomery acredita que seu experimento também pode dar esperança de que o xenotransplante será uma opção mais viável no futuro.

“Estamos ficando cada vez melhores nisso, e acho que essa é a mensagem que gostaria de transmitir”, diz Montgomery. “Haverá altos e baixos. Nada que valha a pena fazer está livre de algumas complicações.” Mas, acrescenta, “tudo tem solução.”

Fonte: CNN Brasil

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