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Entre a esperança e a hemodiálise: vidas marcadas pela doença renal crônica

A sala é silenciosa, exceto pelo som compassado das máquinas. Cada batida do equipamento é um lembrete de que a vida segue, mesmo quando os rins já não conseguem cumprir sua função. Assim é a rotina de centenas de tocantinenses diagnosticados com doença renal crônica. Uma condição silenciosa que, muitas vezes, só se manifesta em estágios avançados.

No Tocantins, o número de pacientes em tratamento cresce a cada ano, mas junto com os desafios, também surgem histórias de coragem, superação e resiliência.

Jardel Pereira é paciente renal há quase 4 anos. Para ele, o transplante seria uma chance de continuar fazendo as coisas que tanto ama.

“Eu hoje, pra mim, se eu conseguir um rim, eu pensava em voltar de novo a fazer minha função que eu fazia. Hoje pra mim foi muito difícil também parar de trabalhar de uma vez assim. Então, o meu objetivo é voltar de novo exercer a minha função lá no município.”

Jardel é morador de Bom Jesus do Tocantins e faz hemodiálise na Fundação Pró Rim em Palmas. Foto: Cláudia Orquiza

Doença Renal Crônica

Segundo o Ministério da Saúde, Doenças Renais Crônicas são alterações variadas que afetam tanto a estrutura quanto a função renal, com múltiplas causas e diversos fatores de risco. A doença renal crônica também pode ser caracterizada pela perda lenta e progressiva da função dos rins. Os principais fatores de risco incluem hipertensão, diabetes e fatores hereditários. 

A doença renal crônica atinge milhares de pessoas ao redor do mundo. No Tocantins, a realidade não é diferente. De acordo com Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, haviam 2.823 pacientes nefrológicos em acompanhamento na Atenção Primária à Saúde em 2023 no Estado.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) avalia que, globalmente, esta condição crônica afeta cerca de 10% da população.

O nefrologista e responsável técnico da Fundação Pró Rim em Palmas, Dr. Antonio Amadeu Parisotto Giannasi, inscrito no CRM-TO 1314 e RQE-TO 568, estima que 150 mil pessoas no Tocantins têm doença renal em algum dos seus estágios e sequer sabem. O que significa que essas 150 mil pessoas podem falecer de doença renal, segundo afirma o médico.

Em muitos desses casos, os pacientes demoram a aceitar o diagnóstico, negligenciando o tratamento, e contribuindo para agravar o quadro de saúde. Nesse processo, o nefrologista afirma ainda que o paciente renal crônico passa por quatro fases da doença que são a “fase da negação. O paciente não quer acreditar que ele tem uma doença crônica. O que retarda o atendimento, o ingresso no programa de diálise, negligência o tratamento em casa. Outra fase de negociação. O paciente fala que só faz algo se receber algo em troca. E a fase de transferência. Ah, eu só [estou] ruim assim porque vocês ou a sociedade [fizeram] com que eu ficasse doente. E por último vem a fase de aceitação da doença. Isso impacta muito na vida do paciente quando ele não aceita a doença rápido”, explica.

Nefrologista Doutor Antônio Amadeu atua na Fundação Pró Rim em Palmas. Foto: Cláudia Orquiza

Para Jardel, o diagnóstico foi uma descoberta assustadora e difícil de aceitar, pois ele era ativo e seguia sua rotina normalmente, se dividindo entre o trabalho na prefeitura de Bom Jesus e a vida pessoal.

“Foi difícil, porque até então eu não sabia que tinha esse problema e vinha acarretando umas coisas na minha saúde, mas eu fiz uns exames antes, não detectou. Quando veio foi de uma vez, me pegou de surpresa. Pra mim foi difícil no dia do diagnóstico, não foi fácil. Eu tive que mesmo, assim, levantar muitas coisas na minha cabeça, que passava”, relata.

Os rins são indispensáveis para o bom funcionamento do corpo, pois têm a função de filtrar o sangue e remover as impurezas do nosso organismo. Quando perdem essa capacidade, o corpo acumula toxinas e excesso de liquido, o que pode levar a sintomas como inchaço, fadiga, náuseas, convulsões e em casos mais graves, até a morte.

Terapia renal substitutiva

O paciente renal crônico, uma vez diagnosticado com essa condição, entra em um quadro progressivo e irreversível de falência renal, sendo então acompanhado por um médico nefrologista. Esse especialista irá adotar a melhor estratégia de tratamento no processo de terapia renal substitutiva, que visa substituir a função dos rins.

“A terapia renal substitutiva compreende três modalidades: a hemodiálise, a diálise peritoneal e o transplante renal”, explica o nefrologista.

A diálise peritoneal é utilizada quando o paciente já se encontra em uma fase avançada de insuficiência renal e é realizada através da inserção de um cateter no abdômen, que filtra o sangue através do peritônio e pode ser feita em casa pelo próprio paciente.

Já a hemodiálise é realizada em clinicas e hospitais, utilizando um aparelho dialisador que filtra o sangue, removendo as toxinas do organismo do paciente.

A outra etapa da terapia renal substitutiva e a solução definitiva para pacientes que já se encontram em estágio avançado e prolongado da doença, é o transplante renal.

“O transplante renal tem duas formas de acontecer. O doador vivo ou o doador falecido.  Então quem tem um doador vivo às vezes consegue se programar e se projetar e sair daqui (do Tocantins) e fazer num centro transplantador”, explica Jonas Correa, gerente regional da Fundação Pró Rim no Tocantins.

Jonas Correa, gerente regional da Fundação Pró Rim em Palmas. Foto: Cláudia Orquiza

João Batista, morador de Bom Jesus do Tocantins e pai de três filhos, descobriu a doença renal em 2014. Com pouco mais de três anos na fila, conseguiu um doador compatível e passou por transplante renal. Porém, antes de sair do hospital, o enxerto foi rejeitado pelo organismo. 

‘Eu fiz em Goiânia o transplante. Tem cinco anos que eu fiz o transplante, aí deu rejeição. Nem cheguei a sair do hospital não. Antes de sair do hospital já rejeitou. Eu coloquei o nome primeiramente em São Paulo, passei 2 anos e pouco em São Paulo e transferi pra Goiânia. Ai quando eu [estava] em Goiânia, foi [rápido] saiu o rim. O impacto é grande. Na expectativa que ia dar tudo certo né, aí de uma hora pra outra não deu certo aí é complicado. Mas, pra tudo tem a hora certa,” conta.

João Batista em mais uma sessão de hemodiálise. Foto: Cláudia Orquiza

De acordo com estudo da National Library of Medicine, a rejeição, quando acontece minutos após o transplante, é definida como rejeição hiperaguda e está relacionada a incompatibilidade sanguínea entre doador e receptor ou ainda pela ação de anticorpos pré-formados, criados pelo corpo quando é detectado algum organismo invasor.

Entre uma viagem e outra, a expectativa de encontrar um doador compatível é diária. Às vezes, a última esperança de quem já luta há anos contra a insuficiência renal. E esse contexto de espera, ansiedade, medo e esperança, traz muitas mudanças, tanto física quanto emocionais na vida de quem enfrenta a doença. 

O gerente regional da Pró Rim, afirma que a Fundação tem nas suas clinicas uma equipe multiprofissional. O paciente, além de ser atendido por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, conta com o acompanhamento contínuo de nutricionista, assistente social e psicólogo. Esses profissionais irão fornece o suporte necessário para que o doente renal consiga passar por todas as fases do tratamento. 

O olhar do Ministério Público – garantia de acesso e fiscalização

A atuação do Ministério Público do Tocantins – MPTO é fundamental para garantir que pacientes tenham acesso a tratamentos adequados e que políticas públicas de saúde renal sejam efetivadas. Para isso, o MPTO atua no fortalecimento da Atenção Básica, fiscalizando e cobrando medidas efetivas dos gestores.

“Nós temos diversas medidas de fortalecimento da atenção básica, seja primária, seja secundária. Temos Ações Civis Públicas e temos inquéritos civis públicos também. É necessário e o MP tem feito muito isso, que os 139 municípios do Estado do Tocantins fortaleçam a política de redução da doença com programas de acompanhamento do paciente que possui hipertensão. Seja do paciente com diabetes, seja em relação aos primeiros sinais ou sintomas de problema renal, evitando que esse paciente torne-se crônico, agudo ou que eventualmente venha para a fila do transplante, o que é algo não desejado, que passa muito pelo fortalecimento da atenção primária, que é uma atuação prioritária do Ministério Público brasileiro”, afirma a promotora pública Araína Cesária.

Araína Cesária Ferreira dos Santos D’Alessandro, Promotora de Justiça, titular da 27° Promotoria de Palmas. Foto: Cláudia Orquiza

O Ministério Público atua primordialmente de forma coletiva em defesa dos direitos da sociedade e dos direitos fundamentais do cidadão. Na área da saúde, para assegurar que todos os pacientes renais crônicos no Tocantins tenham acesso regular à hemodiálise, ao transporte sanitário e aos medicamentos necessários, o MP atua visando garantir que o Sistema único de Saúde opere com base nos princípios da Integralidade, da Universalidade e da Participação Popular.

A promotora afirma ainda que além desses princípios, o Sistema único de Saúde traz dois princípios que tocam diretamente os casos dos pacientes que sofrem de doença renal crônica.

“O primeiro é o da regionalização. […] o SUS ele é pensado em garantir se não o tratamento na cidade do paciente, ao menos o tratamento regionalizado. Então, muitas vezes ele tem que deixar a sua família, deixar toda a sua rede de apoio para conseguir uma vaga em outro estado. […] o outro que é o mais recente princípio do SUS, incluso lá na LEI do SUS que é 8.080 (Lei Orgânica da Saúde, 1990) esse ano é o da humanização. Então regionalização e humanização são princípios que tocam muito esse paciente, porque a gente entende que não é um tratamento humanizado, o tratamento em que o paciente tem que se deslocar do seu local a uma longa distância e permanecer durante muito tempo,” finaliza.

O Ministério Público do Tocantins atua com ações judiciais e extrajudiciais, sempre priorizando o diálogo na solução dessas demandas, ouvindo pacientes, prestadores e conselhos de saúde, para buscar a solução em menor tempo.

A vida que continua

A doença renal crônica transforma vidas, mas também revela o poder da resiliência, da solidariedade e da esperança. 

Enquanto João Batista afirma que viver ligado a uma máquina é difícil, mas que está se adaptando, Jardel relata que só quer ter a chance de voltar a trabalhar e ter uma vida normal. Como eles, milhares de pessoas vivem essa mesma realidade diariamente. 

Os longos períodos fora de casa, a solidão do tratamento e uma vida cheia de limitações, impactam diretamente na vida emocional. Mesmo assim, os pacientes seguem lutando, vivendo um dia após o outro na esperança do transplante renal e assim poderem voltar à rotina.

Fonte: Gazeta do Cerrado

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