Cirurgia com o médico a milhares de quilômetros de distância, caneta que detecta câncer, transplante com órgão de porco: veja os procedimentos que devem ganhar tração nos próximos anos
Poucas áreas do conhecimento humano evoluíram tanto quanto a medicina nos últimos anos. A distância física já não impede cirurgias e o tempo para análises e tomada de decisão durante operações pode cair de uma hora para menos de 20 segundos graças a uma caneta.
Começamos a testar o uso de órgãos de animais geneticamente modificados, em um avanço sem precedentes no entendimento do sistema imune e dos mecanismos de rejeição. Ao mesmo tempo, enveredamos pela estrutura do cérebro e somos capazes de transformar a intenção de falar em voz em alto e bom som.
São avanços que parecem obras de ficção, mas já são realidade em laboratórios e hospitais. Veja a seguir alguns deles.
Superação da distância
Em 23 de setembro de 2025, 12.034,92 km separavam o cirurgião brasileiro Leandro Totti Cavazzola e o paciente Brian William de Carvalho, de 25 anos. O primeiro estava no Hospital Jaber Al-Ahmad, no Kuwait, e o segundo, no Hospital da Cruz Vermelha, em Curitiba. Mas a distância não impediu que o administrador passasse pela cirurgia para corrigir uma hérnia inguinal — feito que entrou para o Guinness Book.
“Falaram que foi uma cirurgia excelente e que a gente fez história”, celebrou Carvalho horas após a operação.
A telecirurgia foi reconhecida pelo livro dos recordes como a mais distante já realizada. Além disso, uma segunda conquista foi alcançada. No mesmo dia do procedimento, médicos do Kuwait fizeram o inverso. Eles operaram um paciente internado no Al-Ahmad enquanto estavam em Curitiba, demonstrando a possibilidade de realizar telecirurgias robóticas em dupla direção.
“Ambas as cirurgias foram concluídas com sucesso e segurança, reforçando a viabilidade da colaboração global em cuidados cirúrgicos e estabelecendo um novo padrão no campo da cirurgia robótica remota”, cita o Guinness, em seu site.
O projeto foi idealizado pelo médico Marcelo Loureiro, fundador da Scolla Centro de Treinamento Cirúrgico, e planejado durante cerca de dois anos. Para ele, a iniciativa mostra que temos capacidade de realizar esse tipo de operação no Brasil.
Para Cavazzola, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a operação também abre a perspectiva de, no futuro, os cirurgiões se apoiarem a distância em casos de alta complexidade.
O coração na palma da mão
No caso de Arthur Prado, de 1 ano, o desafio era outro: aguardar um coração compatível e passar por uma cirurgia extremamente delicada.
Arthur nasceu saudável, mas desenvolveu uma inflamação do músculo cardíaco (miocardite) após uma infecção viral. O quadro evoluiu e o coração entrou em falência irreversível. Seria necessário um transplante.
Para aguardar até o procedimento, o bebê foi conectado ao Berlin Heart, dispositivo que atua como um coração extracorpóreo, bombeando sangue para o corpo. Para a mãe de Arthur, a fotógrafa Amanda Cibele, de 35 anos, o equipamento foi primordial.
“Ele serve como uma ponte para a criança chegar bem ao transplante, principalmente no caso do Arthur, que era muito pequenininho. Com o coração artificial, a criança consegue ganhar peso, fazer atividades dentro da UTI, é surreal pensar que existe isso”, diz.
“Infelizmente, aqui no Brasil não é acessível para todos, ainda é muito restrito”, lamenta Amanda, que agora cria peças de roupa incentivando a doação de órgãos e reverte parte das vendas para pacientes na fila de transplante.
A família imaginava que a espera por um coração duraria pelo menos um ano, mas o telefone tocou em 19 dias. O doador era um bebê da mesma idade de Arthur, então com nove meses, que havia tido a morte cerebral declarada no Rio de Janeiro.

transportar rapidamente o órgão, que pesava apenas 35 gramas.
Pelo tamanho do paciente – Arthur pesava cerca de 7 quilos – e do coração, os médicos da Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP) precisaram usar instrumentos específicos, como lupa, pinças e fios delicados. A cirurgia durou a tarde inteira e o início da noite, e foi bem sucedida.
Arthur teve alta em 14 de agosto e pôde comemorar o primeiro aniversário em casa. O tema da festa foi “Super Thui”, com o pequeno como super-herói.
Ele segue em acompanhamento, com uso de medicações para evitar a rejeição do órgão e sessões de fisioterapia para recuperar os meses passados no hospital, e já ensaia ficar em pé. “É um sonho, um sonho realizado”, sintetiza Amanda.
1º transplante de rim de porco
O médico brasileiro Leonardo Riella entende o quanto a espera por um órgão é desafiadora. Professor associado de Medicina e Cirurgia na Harvard Medical School e diretor médico de transplante renal do Massachusetts General Hospital, em Boston, ele pesquisa há anos como realizar o transplante de órgãos de porcos geneticamente modificados para seres humanos e, assim, melhorar a qualidade de vida de quem está na fila.
Em março de 2024, Riella comandou o primeiro transplante de rim de porco geneticamente modificado para um paciente humano vivo. Richard Slayman, de 62 anos, sobreviveu por dois meses após o procedimento, considerado um marco no campo dos xenotransplantes, nome técnico dos transplantes de órgãos ou tecidos de uma espécie para outra.
“A primeira vez que ouvi falar sobre xenotransplante foi por volta de 2005, quando vim para os Estados Unidos fazer minha especialização”, lembra Riella. “Naquela época, os resultados eram péssimos. Apesar do entusiasmo, não parecia que a coisa ia vingar. A maioria dos porcos não tinha alterações genéticas ou tinha uma única alteração, então, quando ocorria o transplante no macaco, o rim não sobrevivia mais do que alguns dias.”
Os pesquisadores tentavam evitar a rejeição hiperaguda com medicamentos, mas a barreira de incompatibilidade era muito grande e só começou a ser vencida com o advento da CRISPR-Cas, técnica que permite editar o DNA de maneira extremamente precisa e rápida. “Era o instrumento necessário para conseguirmos aumentar essa compatibilidade”, diz o nefrologista.
O uso dessa tecnologia, o aumento do conhecimento sobre o sistema imune e o desenvolvimento de novos medicamentos levaram a uma mudança nos testes. “Em 2015, tivemos macacos que sobreviveram alguns meses com o rim do porco e, em 2023, publicamos um trabalho grande que mostrou que existiam macacos sobrevivendo mais de dois anos com um rim de porco geneticamente editado.”
Com os resultados, os pesquisadores começaram a discutir com os órgãos de regulação a possibilidade de estudos em humanos e receberam a autorização para a cirurgia em caráter experimental.
“Estávamos ansiosos para saber o que aconteceria uma vez que conectássemos esse rim. Será que o rim ia mudar de cor imediatamente? Será que ia começar a produzir urina? Será que ia conseguir manter a pressão arterial do paciente? Será que conseguiria manter todos os níveis de minerais exatamente como os humanos necessitam?”, recorda Riella.
Ele conta que foi extremamente gratificante ver como o rim rapidamente passou a produzir urina e como os níveis de minerais e água no sangue foram ajustados. “Foi uma surpresa enorme ver que o paciente fez mais de dois litros de urina nas primeiras 24 horas, que estava andando já um dia depois do pós-operatório.”
“A maioria dos porcos não tinha alterações genéticas ou tinha uma única alteração, então, quando ocorria o transplante no macaco, o rim não sobrevivia mais do que alguns dias” Leonardo Riella – Diretor médico de transplante renal do Massachusetts General Hospital
O grupo acompanhou toda a evolução do quadro de Slayman e, com os dados, pôde propor um protocolo para um estudo maior, com outros três pacientes. O próximo passo é realizar um ensaio clínico com mais de 30 pacientes, começando em 2026.
Riella espera que, com o entendimento de como o corpo reage ao rim transplantado, o xenotransplante possa ser uma opção para pessoas com insuficiência renal terminal; uma forma de evitar a diálise e dar qualidade de vida durante a espera pela doação de um órgão humano, sempre a alternativa ideal.
Fonte: Estadão


