Por Yussif Ali Mere Junior
É médico nefrologista e presidente da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante
Um dos grandes desafios de saúde pública no mundo é a doença renal. À medida que a população vem aumentando o sobrepeso e a obesidade, e ainda fazendo uso mais intenso de sal, açúcar, álcool, tabagismo, medicamentos, anabolizantes – e ainda tendo dificuldade em aumentar a prática de exercícios físicos e até mesmo a ingestão de água – temos visto crescer doenças como diabetes e hipertensão, grandes causadoras de doenças renais.
A décima edição do Atlas do Diabetes, da Federação Internacional de Diabetes, mostra que 537 milhões de pessoas têm algum tipo dessa doença no mundo. Já a hipertensão afeta um terço da população mundial , ou seja, 2,7 bilhões de pessoas e entre elas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 80% não recebem o tratamento adequado.
Esses dados nos fazem ter a certeza de que as doenças renais seguirão se alastrando e tirando a vida de muitas pessoas, justamente porque os danos aos rins muitas vezes somente são percebidos pelo doente quando já estão em fase muito avançada. A doença renal crônica é diferente da crise renal causada por uma pedra, por exemplo, que traz uma dor aguda. Muitas vezes, as pessoas chegam a morrer de infarto, acidente vascular, e o início desse problema de saúde se deu pelo mal funcionamento dos rins. Mas o paciente não sabia. E não teve a chance de buscar um tratamento que pudesse retardar a perda total dos rins, com uso adequado de medicamentos e mudanças de alimentação e estilo de vida. Estudos indicam que há no Brasil pelo menos 21 milhões de pessoas com algum nível de doença renal.
Por sorte, quando os rins deixam de funcionar, existe uma terapia muito eficaz, a chamada diálise. Os rins são os únicos órgãos que ao se tornarem completamente deficientes, podem ter boa parte de suas funções substituída por uma máquina que consegue filtrar o sangue para retirar os resíduos tóxicos e os líquidos em excesso no organismo. Os líquidos se acumulam pela perda da função do aparelho urinário. Além da diálise, a outra solução para o paciente que chega à fase terminal da doença renal crônica é o transplante, quando um rim saudável é inserido no organismo. Mas infelizmente, o acesso ao transplante não é para todos os renais e a fila para um transplante é longa e demorada.
Por isso, neste mês de agosto, celebramos a diálise, tratamento que mantém a vida de 155 mil brasileiros, de acordo com o último Censo da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). No dia 29 de agosto, Dia Nacional da Diálise, celebramos a existência dessa terapia. E a Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante criou para 2024 a campanha #ADiáliseNãoPodeEsperar, com o tema: Diálise: não apenas um tratamento, mas uma ponte para a vida.
É a diálise que garante uma sobrevida de até mais de 30 anos para o paciente renal crônico. Sim, temos pacientes que não puderam transplantar e vivem todo esse tempo. São pessoas que comparecem ao menos três vezes por semana numa clínica e realizam a filtragem do sangue por duas a quatro horas em cada sessão.
Temos que celebrar, mas não podemos deixar de salientar que ainda há desafios e os serviços de diálise no país podem e devem ganhar em qualidade. Como representante da entidade que reúne mais de 800 clínicas de diálises no país, não posso deixar de pontuar que não podemos mais conviver com renais crônicos internados em hospitais para fazer diálise. E estimamos que 2 mil pessoas ainda estejam nessa condição por falta de vagas nas clínicas. As clínicas, em sua maioria, financiadas pelo SUS e convênios, enfrentam há anos um subfinanciamento que não permite expandir, criar novas vagas, adquirir mais equipamentos, abrir novas unidades.
A diálise peritoneal, uma modalidade de diálise que o paciente pode até mesmo realizar em casa, chega a apenas 6% dos pacientes no Brasil, enquanto no mundo a taxa é de ao menos 12%. Sem peritoneal e sem clínicas perto de suas cidades, muitos pacientes de cidades do interior se deslocam de 3 a 4 horas para serem atendidos em outras localidades que possuem clínicas, saindo de casa na madrugada e ficando até mesmo impossibilitados de trabalhar. Outro gargalo em nosso país é a diálise pediátrica, modalidade que possui poucas unidades de atendimento, tendo em vista o custo maior da sessão e um subfinanciamento que não permite novos investimentos. Até mesmo as cirurgias de elaboração de fístula nos braços dos pacientes não ocorrem no volume necessário e muitos ficam usando cateteres no pescoço, expondo-os a maior risco de infecção. Temos que olhar sobretudo ao Norte e Nordeste, onde faltam nefrologistas e a desassistência é ainda maior.
Nós nefrologistas lutamos por uma condição mais digna aos pacientes renais. Precisamos diminuir a mortalidade de pacientes renais crônicos, que ainda é alta, em torno de 20%. Precisamos introduzir melhorias substanciais, como reduzir o número de vezes que reutilizamos um dialisador. Oferecer terapias mais avançadas, como a hemodiafiltração, a mais pacientes, e com isso, salvar mais vidas. Precisamos que as clínicas recebam em dia pelos serviços prestados e lutamos para que o subfinanciamento da nefrologia deixe de ser a realidade, tendo mais municípios e estados cofinanciando junto ao ministério da Saúde. Apenas 9 estados do Brasil mais o Distrito Federal estão hoje destinando recursos extras à diálise, apesar dos inúmeros pedidos. Hoje lutamos para reafirmar que a diálise não pode esperar.
Fonte: Labor News