Discussão demandaria profunda análise de impacto antes de sua votação, aprovação e vigência.
Por *MARCOS OTTONI – Diretor jurídico da CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde)
A decisão liminar do ministro Roberto Barroso que reestabeleceu a aplicação do piso da enfermagem estava em julgamento ao longo desta semana no plenário virtual do STF (Supremo Tribunal Federal) até o pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. O julgamento se dá no âmbito da ADI 7222, movida pela CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços), que questiona a constitucionalidade da Lei 14.434/2022.
Durante a crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, a categoria dos enfermeiros aproveitou o merecido reconhecimento à seu trabalho para convencer os parlamentares da necessidade de um piso salarial para a profissão. Tal dispositivo foi implementado pela Lei 14.434/2022, mas, devido ao impacto projetado para sua implementação e ausência da indicação de fontes de custeio, teve sua aplicação suspensa pelo STF em setembro de 2022.
O impacto da implementação previsto por consultorias contratadas pela iniciativa privada varia de R$ 12,5 bilhões a R$ 15,8 bilhões anuais. Principal ponto de preocupação do relator, ministro Roberto Barroso, foi o financiamento da implementação por estados e municípios. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou no último dia 12 de maio decreto do Congresso liberando crédito de R$ 7,3 bilhões para que estados e municípios possam arcar com os custos do novo piso da enfermagem. Foi este fato novo que motivou a liberação da implementação do piso em todo Brasil. Barroso menciona as possíveis e esperadas consequências para o setor privado, incluindo a probabilidade de demissões em massa dos profissionais de enfermagem. É sobre tais consequências que queremos nos aprofundar aqui.
Deixaremos de lado, por hora, relevante questão sobre se a definição de um piso salarial nacional para uma determinada categoria profissional é condizente com o princípio da livre iniciativa presente no artigo 1º e artigo 170 da Constituição Federal. Cabe questionar quais critérios técnicos foram utilizados na definição dos valores do piso, pois a escala de recursos necessária para sua implementação possui diferença alarmante entre as médias salariais atuais, estabelecidas na atuação livre de mercado, e as impostas pela nova legislação para um contingente de 1.290.908 profissionais, de acordo com dados da RAIS 2020.
Hoje, 69% desses profissionais têm remuneração abaixo do piso estabelecido pela lei, segundo estudo da consultoria LCA. O aumento salarial médio concedido será de 32%. Para estabelecer a razoabilidade dos valores mínimos propostos na lei – a saber, R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e R$ 2.375 para auxiliares de enfermagem e parteiras – cabe compará-los aos pisos salariais estabelecidos pela via de negociações coletivas sindicais.
Entre agosto de 2021 e julho de 2022, houve 484 negociações para os diferentes segmentos da categoria. Os valores médios negociados entre trabalhadores e empregadores se apresentam na seguinte proporção em relação aos patamares previstos na Lei 14.434/2022: R$ 2.888 para os enfermeiros (61% do respectivo piso), R$ 1.740 para os técnicos de enfermagem (52% do respectivo piso) e R$ 1.514 para os auxiliares de enfermagem (64% do respectivo piso). São diferenças muito grandes, que denotam o impacto que haverá sobre o custo da assistência à saúde após sua implementação.
Os principais beneficiados pela nova legislação, porém, podem ser surpreendidos pelas consequências da aplicação da lei. Estudo conduzido pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) levantou alguns cenários possíveis. Destaco os três principais, entendendo que devido à diversidade de situações encontradas em todo país, reforçadas pelas diferenças entre vínculos estabelecidos por agentes públicos e privados, a perspectiva mais provável é que todos os fenômenos previstos nestes cenários ocorram simultaneamente em alguma medida no mercado.
Cenário 1 – Desligamento parcial de trabalhadores formais com salários mais baixos em relação ao piso, disponibilizando recursos para reajuste dos que têm valores mais próximos.
É provável que ocorra uma combinação de desligamentos e reajustes salariais. O estudo Fipe aponta o desligamento de 36% dos trabalhadores empregados em 2021 (516.950 profissionais), viabilizando reajustes salariais para cerca de 228.039 trabalhadores.
Nesse cenário o número de trabalhadores totais por 10 mil habitantes decairia de 67,4 para 43,2; e o número de trabalhadores totais para cada 100 leitos passaria de 321,3 para 205,9. Para preservar a relação pré-existente entre o número total de trabalhadores na enfermagem para 100 leitos, mesmo após o desligamento de parte dos trabalhadores afetados, estima-se que seria necessária a desativação de aproximadamente 161 mil leitos.
Este cenário prejudica sobremaneira os profissionais em início de carreira ou recém-formados, uma vez que estes são os de menor remuneração e, portanto, mais distantes do piso hoje.
Cenário 2 – Substituição de trabalhadores mais qualificados por aqueles de segmentos de piso menor.
Outro resultado possível, diante do aumento de custo do trabalho atrelado aos novos pisos salariais, principalmente para aqueles com salários menores e mais defasados, é a substituição de trabalhadores mais qualificados (isto é, com salários e pisos mais elevados) por aqueles menos qualificados (com salários e pisos relativamente inferiores). Neste cenário o desligamento atingiria cerca de 383,5 mil trabalhadores (26,7% dos vínculos formais de 2021), número inferior ao do cenário anterior.
Todavia, há uma recomposição drástica do contingente empregado, motivada pela queda de 53,7% no número de técnicos de enfermagem (446,7 desligados) e de 36,4% entre enfermeiros (140 mil desligados), em paralelo à contratação de 202,9 mil auxiliares de enfermagem. Além da deterioração na qualificação média das equipes, a solução reduz o número total de trabalhadores por 100 leitos (321,3 para 253,6) e por 10 mil habitantes (67,4 para 49,4). Cerca de 119,4 mil leitos em todo país deverão ser desativados.
Cenário 3 – Concessão de reajuste a todos os trabalhadores com salário inferior ao piso, sem alteração do nível de emprego.
Certamente o cenário desejado pela categoria e pelos legisladores, mas que tem baixa probabilidade de ser aplicado isoladamente. Também é o que trará maiores consequências à sociedade como um todo, como veremos a seguir.
Nesse cenário os empregadores concederiam os reajustes sem qualquer redução da força de trabalho. Estima-se que os recursos necessários para readequar os salários mensais de 745 mil trabalhadores corresponderiam a um impacto anual de R$ 12,9 bilhões: um acréscimo de 14,7% em relação à folha salarial de 2021.
Um efeito colateral deste cenário poderia trazer novos custos adicionais: trabalhadores que por reconhecimento ou experiência recebiam remunerações superiores ao piso e a seus pares podem demandar que tal diferença seja reestabelecida. Com esse deslocamento salarial, chegaríamos a um impacto anual de R$ 13,4 bilhões.
Para além da categoria da enfermagem, também podemos esperar consequências importantes para a sociedade como um todo. Entendendo que haverá uma combinação de reajustes, demissões e substituições de cargos por segmentos de menor custo, podemos antever os seguintes desdobramentos:
SUS é o maior impactado
Quando divididos entre os segmentos da saúde brasileira, os valores necessários para a implantação do piso da enfermagem são: R$ 7,8 bilhões anuais para o SUS e R$ 4,6 bilhões anuais para o financiamento privado. Os valores do SUS têm origem nas seguintes fontes: R$ 4,1 bilhões para entidades públicas; R$ 2,6 bilhões para entidades sem fins lucrativos; R$ 1,1 bilhão para entidades privadas ou mistas.
Por mais que o decreto sancionado em maio garanta grande parte destes recursos, cabe destacar que os mesmos poderiam ser utilizados para ampliar os tratamentos cobertos pelo SUS, para reduzir as filas de atendimento, para ampliar o número de leitos e para melhorar a infraestrutura do sistema público de saúde como um todo. Quando tal adicional de investimento é acrescido de forma permanente à despesa pública, sem ampliação ou melhoria no atendimento à população, o sistema de saúde, como um todo, fica prejudicado.
Hospitais de pequeno porte podem fechar
Em setembro de 2022 o Brasil dispunha de 6.375 hospitais, segundo dados do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). Desses, 1.778 (27,9%) eram hospitais privados sem fins lucrativos e 1.952 (30,6%) eram hospitais privados com fins lucrativos. Do total, 3.450 (54%) são hospitais pequenos (com menos de 50 leitos), sendo estes mais representativos nas regiões Centro-Oeste (68%), Norte (62%) e Nordeste (61%).
Um dos dados levantados pelo estudo da Fipe foi de que os maiores empregadores pagam, em média, salários mais altos, o que reduz a intensidade do ajuste necessário para o piso da enfermagem para tais estabelecimentos. O oposto, se aplica às instituições de menor porte, que pagam salários menores hoje e terão um impacto superior para o ajuste. Tais instituições podem ter seu equilíbrio econômico-financeiro seriamente comprometido. Esse movimento pode favorecer o recurso à informalidade na relação de trabalho, ou mesmo, favorecer a consolidação do setor de saúde caso não exista disponibilidade financeira para manter a operação dentro do novo marco legal. O fechamento, cenário menos desejado, também traria implicações para outros profissionais da saúde.
Preços dos serviços de saúde vão subir
O aumento do custo de contratação e manutenção de profissionais de enfermagem por hospitais e demais estabelecimentos médicos serão repassados aos preços cobrados pelos serviços de assistência à saúde, tais como: pronto-atendimento, consultas, internações, exames e cirurgias. Os custos adicionais que não forem mitigados por reduções de quadro e troca de profissionais por outros mais baratos serão certamente incorporados aos preços.
Os estabelecimentos privados tentarão, então, repassar esses custos para as tabelas de preços de procedimentos negociadas com as operadoras de plano de saúde. Por sua vez, estas repassarão tal aumento para as mensalidades dos planos de saúde. Hoje são 50,2 milhões de beneficiários nos planos de saúde, conforme dados da ANS (Agência Nacional de Saúde). Todos seriam afetados.
Estados mais afetados pela implementação, que praticam média salarial menor, demandariam reajustes mais intensos nos valores dos planos de saúde do que nos grandes centros.
Qualidade e disponibilidade dos serviços de saúde vão piorar
No Brasil, a relação de profissionais da enfermagem empregados por 1.000 habitantes, em 2020, era de 1,4. Esse número é o segundo menor entre 30 países, conforme dados da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O Brasil só fica à frente da África do Sul, perdendo para Lituânia, Hungria e México.
A prevista redução das equipes de enfermagem, a substituição de enfermeiros e técnicos por auxiliares de enfermagem e a redução do número de leitos são todas consequências apontadas pelos estudos de impacto desenvolvidos sobre a implementação da Lei 14.434/2022.
A discussão envolvendo o piso da enfermagem, sem dúvida alguma, demandaria profunda análise de impacto antes de sua votação, aprovação e vigência. A ausência de tais estudos trará consequências graves e impactará muito mais do que os 1,3 milhão de profissionais da enfermagem.
Foi a preocupação com tais consequências, danosas não só à categoria, mas a toda a sociedade, que motivou a propositura da ADI pela CNSaúde.
Agora, o setor da saúde aguarda o crivo do Poder Judiciário, depositando todas as suas esperanças na sensibilidade do STF, para que se evite os piores cenários ora identificados, mediante a confirmação da declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.434/2022.
*MARCOS OTTONI – Diretor jurídico da CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde)
Fonte: JOTA – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-consequencias-ocultas-do-piso-salarial-da-enfermagem-26052023