Em todo estado, são apenas 37 clínicas de hemodiálise em 26 cidades; CORREIO mostra saga.
Desde 2004, José Marcos viajou 329 mil quilômetros. O aposentado percorreu o equivalente a dez voltas inteiras ao redor da Terra para sobreviver. Em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, não há unidade capaz de tratar sua deficiência renal.
É preciso deixar a casa três vezes por semana, antes do sol nascer, para chegar em Salvador, onde faz hemodiálise. São 160 km de ida e volta. Na Bahia, há um déficit de mil vagas para diálise, disponível em 37 unidades de tratamento concentradas em 26 dos 417 municípios (confira lista abaixo), mostra pesquisa inédita da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT). São 10 em Salvador.
A saga de José Marcos Sampaio de Almeida, 46, começou há 15 anos, quando despertou do sono completamente inchado. A calça sequer passava pelas pernas. Aquilo nunca havia acontecido. Poucas horas depois, já no hospital, o médico confirmou a inoperância do rim de José, que já tinha nascido com apenas um dos órgãos.
O inchaço costuma ser provocado pela perda da capacidade de filtragem das toxinas do sangue e excreção de líquido pela urina. É um dos sintomas da doença, diagnosticada pela dosagem de creatinina, proteína presente dos músculos, no sangue e um sumário de urina.
“Ele disse que eu não duraria seis horas se não fosse internado”, lembra.
Foi quando decidiu sair do emprego em uma loja na capital e retornar a Santo Amaro, onde mora a família. Durante uma sessão de hemodiálise numa clínica de Salvador, na quinta-feira (22), contou como é a vida de quem precisa viajar para conseguir tratamento.
“A pessoa tem que ser guerreira. Tem que ter vontade de viver. Tem dias que dá desânimo”, afirma. A paisagem das salas de sessão logo sugere que muitos não são daqui. Mochilas e malas no chão estão cheias de cobertas e comida. Afinal, todos chegarão às suas cidades apenas quando o dia estiver prestes a acabar.
Os pacientes chegam às clínicas para conseguir substituir artificialmente a filtragem do sangue, naturalmente realizada pelos rins, explica o nefrologista Paulo Rocha. Existem dois tipos de diálise: a hemodiálise e a diálise peritoneal.
Na hemodiálise, é feito um acesso artificial onde são colocadas duas agulhas, uma retira o sangue que será filtrado pela máquina e outras retorna o sangue filtrado.Tudo acontece em tubos chamado de capilares, um rim artificial.
Na diálise peritoneal, o peritônio, membrana do abdômen, recebe um cateter. Por meio dele, um líquido entra em contato com o sangue e elimina as toxinas. A solução é armazenada em dois sacos: um contém o chamado banho de diálise e outro recebe o material drenado. O tratamento pode ser ministrado pelo próprio paciente, com instruções, antes e durante o processo, de enfermeiros e médicos.
Baianos sem tratar
Hoje, na Bahia, a ABCDT estima que 7.953 mil pessoas estejam em tratamento – no Brasil, são 133 mil. Até maio deste ano, foram 6,5 milhões de diálises realizadas no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Na Bahia, foram 432,8 mil.
O último Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica mostrou que a prevalência de diálise crônica, taxa que mostra a média de pessoas em tratamento, é de 518 por milhão. O resultado é o 7º menor do país. Não significa que a Bahia é um estado menos doente, mas menos tratado, como avalia o secretário-geral da ABCDT, Carlos Pinho.
“Temos estados, como a Bahia, com alguns bolsões sem assistência. Dos 5 mil municípios brasileiros, somente 7% tem clínica de diálise”, diz.
Na clínica visitada pela reportagem, havia três pacientes dos municípios de Santo Amaro e Saubara em hemodiálise. Todos homens, acima dos 40 anos, são trazidos por carros das prefeituras a Salvador, por meio do Tratamento Fora de Domicílio (TFD), programa do Sistema Único de Saúde (SUS) para que pessoas possam receber tratamento longe de casa, no local mais adequado.
É justamente o principal perfil dos pacientes, segundo estudo publicado na Revista Baiana de Enfermagem, em 2015: de 63 casos estudados, 40 eram homens, com 49 anos. A justificativa apresentada é a falta de exames periódicos, principalmente.
Área de hemodiálise em clínica privada de Salvador. Procedimento chega a durar mais de quatro horas (Foto: Marina Silva/CORREIO)
A rotina das terças, quintas e sábados é acordar antes das 4h, preparar apenas um bule de café e seguir viagem. A pista ainda está escura quando partem de suas casas. Há cinco anos, o motorista cochilou e o carro em que José Marcos estava saiu da pista. “Querendo ou não, a gente corre muito risco. É o que eu tenho mais medo”, relata. É dos maiores medos dos pacientes, também assustados com a insegurança nas estradas e desanimados com o vaivém. Nos outros dias alternados da semana, chegam pacientes de Alagoinhas, Madre de Deus e São Francisco do Conde.
Nos últimos 10 anos, duas clínicas de diálise fecharam, segundo o levantamento da Associação. Cada uma delas, como explicaram médicos ao CORREIO, atende, em média, 200 pacientes. A estimativa é de que seriam necessárias, no mínimo, seis novas unidades para atender a população hoje diagnosticada.
Enquanto isso, os diagnosticados precisam pegar a estrada. A diálise é questão de vida ou morte. No ano passado, segundo Censo da Sociedade Brasileira de Nefrologia, morreram, em média, 25,9 mil brasileiros em diálise.
Problema antigo
Às 3h30, Antônio Claudelino Passos, 61, precisa estar de pé, no portão de casa, em Saubara, também no Recôncavo. Há cinco anos, viaja com outras três pessoas para sessões de hemodiálise, numa clínica no bairro de Brotas. Desde o diagnóstico, viu o irmão, Valdique, falecer, no ano passado, também vítima de uma insuficiência renal. “Foi um impacto terrível, cheguei a chorar”, relembra. Às vezes, depois da hemodiálise, costuma voltar, no balanço da estrada, com dor de cabeça e mal-estar. “Até a fome morre no corpo”, conta.
No ano de 2007, oito pesquisadores, com apoio da Fundação da Associação Bahiana de Medicina, estudaram a rotina de 45 pacientes do interior que dialisavam no Hospital Geral Roberto Santos, na capital baiana, de 2004 e 2006. Descobriram que eles se deslocavam uma média de 608 quilômetros e 12 horas semanais. Durante um ano, seria o mesmo que ir para a Argentina dez vezes.
A nefrologista Rita Barreto, diretora médica do Instituto de Nefrologia e Diálise, associa os deslocamentos à qualidade de vida do paciente. “O paciente já tem que fazer um tratamento bastante oneroso, que pode causar desconforto pela agulha no braço. O fato de ele ter que viajar só piora”. Resta entender o porquê de existirem bolsões de desassistência. A pergunta foi feita a Carlos Pinho, que acompanhou o monitoramento dos dados.
De todas as unidades que oferecem o tratamento, apenas três estão em hospitais públicos na Bahia. O resto funciona a partir de repasse do SUS. O reembolso por sessão de hemodiálise é R$ 194. No último cálculo, a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) estimou apenas o custo do procedimento em R$ 230.
“As clínicas perdem a capacidade de investir. A quantidade não aumenta conforme a necessidade, o que cria desassistência”, avalia.
A nefrologista Angiolina Kraychete, membro do departamento de Diálise da SBN, acredita que, pelo tamanho da Bahia, seria recomendado a ampliação da diálise peritoneal. Assim, os pacientes, de casa, poderiam fazer o tratamento. As idas às clínicas seriam mensais. Hoje, apenas 77 baianos fazem essa modalidade de tratamento, que custa até R$ 2,8 mil por mês.
“Novamente temos um desequilíbrio operacional. A nossa maneira de transportar esse material [bolsas de líquido com dois ou seis quilos usados na modalidade peritoneal] é pelo sistema rodoviário”, comenta. As duas únicas fornecedoras do material estão no Rio de Janeiro e São Paulo.
O Ministério da Saúde não respondeu à reportagem, até o fechamento, sobre o questionamento dos médicos a respeito do valor reembolsado. A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) foi procurada e também não se pronunciou.
O que há com os rins
Nas salas de diálise, os pacientes se pesam antes e depois do processo. Chegam a perder quatro litros de líquido por sessão. “O paciente com falência renal aguda pode precisar temporariamente de diálise. Na crônica, o paciente necessita dela para se manter vivo”, explica o nefrologista Antônio Raimundo, professor da Universidade Federal da Bahia. A diálise é indicada quando os rins cumprem entre 5 e 15% de sua capacidade.
O transplante costuma ser uma alternativa, já que não há como recuperar potência perdida. No Brasil, foram 5.999 transplantes realizados em 2018. Os pacientes renais costumam apresentar um histórico de problemas de saúde. Diabetes e hipertensão são os principais. Foi o caso de José Marcos e Claudelino.
“A primeira envolve um componente do rim que filtra o sangue e danifica a membra. Já o aumento na pressão, danifica os vasos sanguíneos”, detalha o médico Paulo Rocha.
Um estilo de vida saudável é uma das indicações de prevenção e durante o tratamento. E isso, para os pacientes, inclui estar perto de casa. Depois de cada sessão, José Marcos espera chegar à Toca do Jaguaraci, bar em Santo Amaro, onde reencontra os amigos. Melhor ainda será quando não precisar sair de sua casa.
Atenção: confira sinais de alerta
Hipertensão arterial
Diabetes
Perda de proteínas pelos rins
Edema
Anemia
Dia D da Diálise
Na quinta-feira (29), a mobilização será no Farol da Barra, a partir das 6h: haverá teste de glicemia e aferição de pressã, além de orientações para prevenir a doença renal
Fonte: Correio – https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/doentes-renais-viajam-ate-12h-por-semana-para-se-tratar-na-ba-deficit-e-de-mil-vagas/ – 26/08/2019