Outro homem aguardava transplante há oito meses e recebeu fígado da mesma doadora do adolescente. Os dois tiveram alta médica na terça-feira.
A morte e perda de um parente foi, para uma família da Paraíba, motivo de recomeço nas vidas de Renan Andrade e Wellington Alves. Os dois receberam transplantes de órgãos de uma mesma mulher que faleceu e teve os órgãos doados após autorização da família. Para Renan, de 17 anos, o reinício veio por meio de um rim. Para isso, ele precisou perder o segundo dia de prova do Enem, porque o resto da sua vida chegou sem avisar. Ele se internou no dia 11 de novembro e naquele mesmo dia recebeu o transplante.
Renan era apenas um adolescente querendo jogar bola, passar no vestibular e viver uma vida normal. Mas há um ano descobriu a insuficiência renal crônica sem sequer sentir dor. Durante exames de rotina, os médicos perceberam uma anemia. Foi quando tudo começou. Quando os rins começaram a dar sinais de mau funcionamento, Renan já começou a hemodiálise. Ouviu do médico: “transplante ou hemodiálise a vida inteira”.
No dia 11 de novembro, segundo dia de provas do Enem, recebeu a notícia de que deixaria para trás uma rotina de três por dias por semana nas estradas entre Solânea e João Pessoa. Perdeu a prova, adiou o sonho de cursar arquitetura, mas marcou no calendário o dia de um novo aniversário.
Renan estava na fila do transplante há sete meses. O pai fez todos os exames para ser o doador, mas não conseguiu. A mãe também fez e até iria conseguir dividir um dos rins com o filho, mas antes da cirurgia, que estava marcada para o dia 29 de novembro, uma nova doadora apareceu.
Sem sintomas, Renan mudou a rotina. Só podia consumir 1 litro e 300ml de líquido por dia. Fruta, no máximo três diariamente. Quando excedia a quantidade, passava mal. Apenas 7% dos dois rins funcionava. “Hoje eu tô bem melhor, posso tomar água à vontade agora”, fala Renan, e deixa escapar um sorriso que mistura gratidão com alegria.
A hemodiálise acontecia nas terças, quintas e sábado. A família saía de Solânea às 4h para chegar em João Pessoa por volta das 6h. Para conciliar os estudos, os professores repassavam o conteúdo para Renan quando ele chegava da hemodiálise, ele estudava, mas não ia para escola nos dias do tratamento.
A tristeza de uma morte nunca será resolvida. Nem para quem vai, muito menos para quem fica. Mas o pai de Renan, Josivan Alves, de 55 anos, acha que a dor da família da doadora foi amenizada. “Um pedaço da filha deles está vivendo em outras pessoas”, declarou.
Renan agora só quer agradecer, sabe que num “momento de dor, eles conseguiram salvar várias vidas”. O objetivo é se cuidar, se preparar para o Enem e voltar para a rotina. “Foi bom e ruim [perder a prova], mas tem vários outros anos para fazer. A prova dá pra se preparar de novo”, concluiu Renan.
‘Uma das coisas que nunca fiz foi me entregar’
Para Wellington Alves, de 44 anos, a doação de um fígado foi como dar os primeiros passos novamente. Há pelo menos quatro anos deixou para trás a vida de motorista de caminhão e a paz de viver sem sentir dor. Há mais de sete descobriu a “doença de Wilson”. Há oito meses entrou na fila do transplante. Houve duas decepções, antes da última esperança. Recebeu o fígado da mesma pessoa que doou o rim para Renan. A doadora agora vive, pelo menos, em duas outras pessoas.
Para descobrir que estava com a doença, Welington demorou mais de um ano. Passou por hospitais, clínicas e exames, até descobrir que o forte cansaço que sentia, os inchaços no corpo, a diarreia e as taxas alteradas eram sintomas da “doença de Wilson”. Imediatamente, começou o tratamento. No entanto, entre a descoberta e o transplante, o medicamento começou não fazer mais efeito.
Por duas vezes, uma tentativa de transplante não deu certo. Nas duas, o órgão do doador não estava 100%. “Querendo ou não vocÊ fica ansioso, quando o telefone tocava eu só pensava nisso. Na primeira vez fiquei radiante. Quando fizeram os exames, perceberam que não era adequado”, declarou. Mas sempre manteve a esperança viva. Autoestima e positividade. Foi assim que Welington decidiu seguir.
“Sempre tive a confiança que eu ia conseguir. Isso é fundamental. A esperança de você saber que está em boas mãos, mãos humanas. Pessoas que trabalham com amor incentivam você”.
Fez a cirurgia no mesmo dia que Renan. A recuperação foi surpreendente, como ele mesmo conta. “Pelo processo normal é mais demorado, mas toda a equipe ajudou muito também”, explicou. Os dois receberam alta nesta terça-feira (20).
No entanto, embora para os dois o tempo na fila não tenha sido tão grande, para muitos ainda é difícil conseguir ganhar mais dias de vida com um transplante. “As pessoas não têm a mentalidade de que você doar, faz um bem”, disse. “Se você abrir a mente, abrir seu coração, vai saber que isso ser bom, vai salvar vida”, acrescentou.
Welington era motorista de caminhão, e trabalhou até completar pelo menos três anos da doença. Depois não aguentava mais. “Cansava, não tinha disposição para nada”, disse. Mas hoje sente falta. Se sentiu inútil, parado, dependendo de benefícios que não valiam tanto quanto seu salário. Agora quer ir pra casa, abraçar a família, agradecer e, finalmente, voltar a trabalhar. “Uma das coisas que nunca fiz foi me entregar”, esclareceu.
O Hospital Nossa Senhora das Neves, onde os dois fizeram o transplante, é particular. No entanto, todo o procedimento foi custeado pelo SUS em pactuação com a prefeitura e o estabelecimento de saúde. A unidade hospitalar apenas cede a estrutura e equipe médica para que a cirurgia seja realizada, conforme explicou a assessoria de imprensa.
‘Sei que ela também está feliz’
A família da doadora Shelly Carbalho, de 22 anos, que era cantora de forró, encontrou com Wellington, que recebeu o fígado transplantado. Por coincidência, as famílias já conheciam há mais de 30 anos.
Shelly faleceu em um acidente de trânsito, em João Pessoa. Além dos rins e do fígado, doou também as córneas. “Minha filha gostava de viver, era muito cheia de vida, pra mim isso tudo é muito confortante, eu sei que ela também está feliz”, disse a mãe, Sheila Ferreira.
“Salvou a minha vida, não só a aminha, mas de outras pessoas também, isso sim é exemplo de bondade, exemplo de amor, exemplo de amor ao próximo”, disse Wellington.
‘Um doador pode salvar as vidas de mais de 10 pessoas’
Para o médico Rafael Maciel, responsável técnico pela equipe de transplante de rim do hospital onde os transplantes foram realizados, a doação de órgãos é um ato “benevolente com quem autoriza, que tem a oportunidade de, no meio de tanta tristeza, tanta falta, poder ver viver seu ente querido em outra pessoa. E, principalmente, para quem recebe, que tem a única oportunidade para continuar vivendo”.
Ele explica que o transplante mais realizado no Brasil é o córneas, seguido pelo de rim, fígado, pâncreas, coração, medula óssea e pulmão. Um mesmo doador pode salvar, segundo Rafael, mais de dez pessoas, doando duas córneas, dois pulmões, dois rins, coração, pâncreas, fígado e intestino. Ainda pode doar também a pele, vasos, ossos.
“Não acredito que haja “tabu” em relação a isso. O que nos falta é conhecimento, divulgação dos benefícios e segurança do sistema de doação e transplantes de órgãos, especialmente aqui na Paraíba, que tem baixo engajamento público com a atividade”, declarou o médico.
Embora o transplante de órgãos seja um dos mais complexos métodos de tratamento, porque envolve várias equipes e muita experiência em imunologia e técnicas cirúrgicas, qualquer pessoa pode ser doadora. No entanto, o médico explica que existem exclusões específicas para tipos de órgãos, que são analisadas quando as pessoas se tornam potenciais doadoras. “É mais provável você, na sua vida, vir a precisar de um órgão para transplante do que ser doador”, disse.
Fonte: G1 – https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2018/11/21/jovem-perde-prova-do-enem-para-receber-transplante-de-rim-na-paraiba.ghtml – 26/11/2018