Doações de rim entre amigos ganham aval na justiça e consagram relações

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Floriano ajudou a criar a mulher que viria a se casar com Ismael. Cátia e Roseli se conheceram na igreja que frequentavam. Camila e Janaina eram amigas de infância, mas às vezes ficavam um bom tempo sem se ver.
Todas essas duplas têm algo em comum, além do vínculo de amizade: o transplante de órgãos.
A doação de rim entre pessoas sem relação de parentesco ou conjugal é cada vez mais rara, mas, apesar das restrições legais, segue tendo adeptos no país.
Segundo os registros da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), de 2013 a março deste ano (dados mais recentes) houve 325 procedimentos do tipo, ou seja cerca de seis por mês, em média. O número corresponde a 1,4% do total de transplantes de rim realizados no período.
Além do motivo mais óbvio – é muito difícil alguém se dispor a abrir mão de uma parte do corpo por um amigo –, há outras duas explicações para o índice.
Em primeiro lugar, prefere-se que o paciente receba o rim de pessoa com morte encefálica, para evitar qualquer risco, ainda que mínimo, ao doador (leia texto nesta página). E, além disso, a legislação impõe diversos obstáculos à doação entre pessoas não aparentadas.
Para dar início ao processo, é preciso contratar um advogado para obter autorização de um juiz. Durante a ação, os pretendentes ao transplante serão entrevistados por psicólogos e terão que provar a relação de amizade. Nessa hora, vale apresentar fotografias, declarações de conhecidos, histórico escolar etc.
Essa não é, porém, a parte mais difícil. O mais complicado é conseguir um amigo doador que cumpra uma exigência técnica do decreto de transplantes: ter “quatro compatibilidades em relação aos antígenos leucocitários humanos (HLA), salvo entre cônjuges e consanguíneos”.
Os HLA são grupos de proteínas presentes em algumas células do corpo humano. Ter quatro compatibilidades é algo dificílimo de acontecer entre pessoas que não são da mesma família, explica Luciane Deboni, coordenadora de transplantes da Fundação Pró-Rim.
O objetivo da exigência, diz ela, é justamente desincentivar esse tipo de doação para minimizar a possibilidade de comércio de órgãos –tanto que a regra não se aplica a cônjuges e parentes.
Tecnicamente, com os medicamentos imunossupressores hoje disponíveis, não seria preciso ter tanta compatibilidade.
Foi o que argumentou o advogado Ayrton Carvalho Junior na ação para Camila Costal, 31, receber o rim de sua amiga. Anexados ao processo, pareceres de médicos do Hospital das Clínicas atestaram a possibilidade clínica do transplante.
“O disposto no decreto não se amolda aos conceitos médicos atuais e cria uma injustificável desigualdade de tratamento entre doadores não aparentados (cônjuges em relação a amigos)”, escreveu o desembargador James Siano em sua decisão.
O transplante foi feito no último dia 11 de abril, cerca de um ano e meio depois de a amiga se oferecer para ser doadora de Camila durante um jantar num restaurante japonês em Santos, no litoral sul de São Paulo.
IGREJA
Doente renal por mais de dez anos, Cátia Maria Crispim Rodrigues, 43, também não esquece do momento em que sua amiga Roseli Behnke se ofereceu para ajudá-la. Foi numa igreja em Joinville (SC).
“Eu estava no culto da noite e comecei a passar mal. Sentia muita náusea. Pedi para meu marido me levar para casa e, na saída, veio um grupo de pessoas me ajudar. De repente, ela aparece e diz: ‘Quero doar meu rim para você'”, lembra. “Achei que era a emoção do momento.”
Não era. Primeiro, a família de Roseli foi consultada e deu seu aval ao transplante. Depois, as duas fizeram exames, compareceram em audiência diante de um juiz, mandaram fotos e documentos que comprovavam a amizade –que era recente, pois não fazia um ano que Cátia havia se mudado de Dourados (MS) para lá, em busca de um tratamento melhor.
A cirurgia foi feita em 19 de abril de 2013. A data virou um novo aniversário, sempre comemorado pelas duas.
“Fiquei dez anos em tratamento e, nesse tempo todo, muita gente me procurava para falar: ‘Se eu pudesse doar, eu doaria’. Ela foi lá e doou, sem que eu pedisse.”
RESISTÊNCIA
Quem precisa de um órgão, não pede, diz Cátia. No caso do empresário Floriano do Valle Filho, 59, de Ribeirão Preto (interior de São Paulo), isso é muito verdade. Ele não só não pediu como tentou dissuadir Ismael da Silva Moreira, 24, de doar um rim para ele. “Falei para ele que ele era jovem, que podia se arrepender”, lembra.
Ismael era namorado –hoje é marido– de uma das filhas de sua ex-mulher, que Floriano também trata como filha. Quando soube do problema renal dele, imediatamente quis ajudar.
Foi preciso mais de uma visita para, por fim, convencê-lo a aceitar a doação. A cirurgia aconteceu em 25 de agosto do ano passado.
Alguns dias antes, uma psicóloga ouviu Ismael para saber por que ele queria fazer a doação. Não era por dinheiro nem pela religião, afirmou. “Na verdade, até hoje eu não sei explicar exatamente por que eu fiz isso”, diz.
“Mas não me arrependo.”
ÚLTIMA OPÇÃO
A doação por pessoas sem vínculo de parentesco é sempre a última alternativa para quem precisa de um órgão, afirma Luciane Deboni, coordenadora de Transplantes da Fundação Pró-Rim.
Segundo ela, além dos pré-requisitos clínicos e legais, outra explicação para isso é uma precaução médica. Pelo que se sabe hoje, quem doa um rim consegue viver bem com só um órgão. Mas, como o transplante só se tornou mais rotineiro há cerca de 30 anos, ainda são estudados os efeitos da doação a tão longo prazo.
Fonte: Folha On-Line – SP (10/07/2017)