Diante da atual crise financeira que as clínicas de diálise estão passando a ABCDT procurou o Conselho Federal de Medicina com o intuito de saber como o órgão atua em defesa dos médicos nefrologistas. Confira entrevista com o presidente do Conselho, Dr. Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, presidente do CFM.
– A saúde pública no Brasil passa por uma grave crise financeira e de gestão. No caso dos serviços de nefrologia, há três anos o governo não reajusta o valor da sessão de hemodiálise e tem alegado falta de recursos. Há possibilidade de reverter esse quadro?
Recentemente, divulgamos alguns números que ajudam a entender o significado da gestão ineficaz. Desde 2003, considerando-se as despesas com investimento e custeio, o Ministério da Saúde deixou de aplicar no Sistema Único de Saúde (SUS) valor maior que R$ 136,7 bilhões. O rombo corresponde a mais que o orçamento de um ano inteiro da pasta. A população foi penalizada nesse período com atenção mais precária à saúde, em consequência da incapacidade de aplicação do orçamento. Por conta do subfinanciamento histórico e da má gestão, todo o modelo de atenção ao paciente na rede pública está comprometido. As dificuldades não se restringem a uma área e a crise é sistêmica. Portanto, acredito que é preciso aperfeiçoar o SUS como um todo. As mudanças passam pela oferta de melhores condições de trabalho, pela contratação de recursos humanos, pela valorização do médico e de outros profissionais de saúde, com a oferta de remuneração adequada e de instrumentos para cumprirem seu papel de forma adequada. Só assim cessarão as sucessivas denúncias da falta de estrutura, de ausência de leitos e de acesso restrito a medicamentos e tratamentos importantes, como hemodiálise, radioterapia e quimioterapia, entre outras.
– Qual o papel que cabe à sociedade organizada neste processo, especialmente as entidades médicas e de pacientes?
Temos contribuído com este processo de múltiplas formas. No caso do CFM, isso ocorre pela atuação política no Congresso e em outras esferas de decisão, como o Judiciário, o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União. São ações que mantêm a tradição da classe médica de participar ativamente da construção e da condução das políticas públicas nacionais, especialmente no campo da saúde. Nos últimos anos, as resoluções do CFM se tornaram referência para juízes, procuradores e gestores. Outra caminho adotado é o de revelar para sociedade o tamanho da crise que afeta o SUS e o exercício da medicina, com todas as suas implicações. Para tanto, temos contato com o apoio da imprensa que tem dado grande visibilidade aos estudos e levantamentos feitos pelo Conselho. Todos alcançaram grande repercussão e, em diferentes situações, isso levou os responsáveis a rever os caminhos adotados. O que se nota é que a realidade dos fatos exige a continuidade desses e de outros esforços para a preservação e promoção da dignidade e da ética na assistência à saúde do povo brasileiro e pelo respeito e valorização dos médicos.
– O número de pacientes em programa de diálise aumentou 300% nos últimos 15 anos. Enquanto isso, o número de clínicas aumentou apenas 34% Como pode ser entendido esse descompasso entre procura e oferta?
Não fizemos uma análise aprofundada dos dados apresentados, mas o que parece não existe uma estratégia, um planejamento adequado no âmbito da gestão que permita um adequado equacionamento entre a demanda e a oferta de serviços. Se o Governo não faz sua lição de casa não terá condições de manter os pacientes bem atendidos em suas necessidades. Esse descompasso, visível nas inúmeras queixas e denúncias que são alvo de reportagens, apenas aprofunda o sentimento de insatisfação dos brasileiros com relação ao SUS. Espera-se que o Governo busque reencontrar a rota do diálogo com a sociedade, entendendo suas reinvindicações e contemplando-as.
– Somente 7% dos municípios brasileiros têm clínicas de diálise. Muitos pacientes precisam viajar até mais de 200 km três vezes por semana para realizar seu tratamento. Como o senhor avalia essa realidade?
O desafio imposto ao Governo não se resume a garantir a presença dos médicos em áreas de difícil provimento. Pensar que a figura de um profissional em um município distante é suficiente para melhorar a vida da população é simplificar de forma irresponsável uma questão de extrema complexidade. E a população sabe disso. Ao criticar a atuação do Governo na gestão da Saúde, como faz em diversas pesquisas de opinião, o brasileiro mostra que já percebeu que o setor atravessa uma grave crise de responsabilidade, materializada em longas filas, tempo de espera e dificuldade de acesso a consultas, exames, cirurgias e outros procedimentos, como diálises e hemodiálises. Para mudar essa realidade perversa, como disse anteriormente, em primeiro lugar o Governo precisa ampliar sua participação no gasto em Saúde no País. E também tem que aperfeiçoar os mecanismos de gestão, tornando-a mais moderna, ágil e transparente pela criação de mecanismos efetivos de monitoramento, controle e avaliação das políticas públicas.
– Como o CFM pode colaborar com a valorização do trabalho médico e a qualificação dos serviços oferecidos em meio a toda essa problemática?
O CFM não abre mão de seu papel como agente de defesa da ética no exercício da medicina e da qualificação da assistência. No cumprimento dessa missão, todos os esforços têm sido empreendidos, com foco nos interesses dos médicos e dos pacientes. Nas interações mantidas, o Conselho tem chamado a atenção para o diagnóstico de crise na esfera da saúde e exigido a tomada de decisões. Não existe solução fácil e simplista para a saúde pública, um problema crônico e complexo que exige do Poder Executivo prioridade, planejamento como política de Estado e não de governo, efetivo combate e prevenção à corrupção, e competente administração dotada de rigoroso sistema de controle e avaliação. Desta forma, ainda na perspectiva de mais saúde, com melhor nível de renda, é indispensável a luta contra as desigualdades socioeconômicas com programas que não sejam populistas, em condições condizentes com o desenvolvimento sustentável da Nação. Em síntese, precisamos de mais verbas para a assistência à saúde pública, não obstante, a serem agregadas ao seu orçamento sem elevação de uma carga tributária, já alta e compatível com as demandas sociais do País, desde que administrada com probidade e corretas escolhas das prioridades.
– Quais são os parâmetros que devem nortear a atuação dos médicos em um quadro de desassistência generalizada, conforme tem sido sucessivamente noticiado pela imprensa?
O exercício da medicina na atualidade exige compromissos éticos fincados em um único pressuposto, que não é outro, senão o da cidadania em tempo integral e no mais elevado patamar da consciência, que nos permite transitar de fim para fim e de topo para topo da existência. Refiro-me à cidadania em total dimensão de sua qualidade, que inclui o sentido grego de identidade orgânica, do cidadão que vive com entusiástico engajamento o dia a dia de sua polis, alcançando os espaços das relações primárias entre governantes e governados. William Shakespeare já dizia que a “transformação é uma porta que se abre por dentro”.
– No início de 2016, a imprensa fez sérias denúncias contra empresários e médicos que faziam a prescrição e a venda de órteses e próteses de forma irregular. Na avaliação do CFM, como deve ser o comportamento do profissional em sua relação com a indústria e a farmácia?
Contra a impunidade, opõe-se o princípio tão jurídico quanto civilizado de que a lei é para todos. Não importa se a máfia atua no poder público, na área do petróleo ou medicina. Toda classe profissional encerra em si homens dos quais ela se orgulha e outros que ela renega. A esmagadora maioria dos mais de 400 mil médicos brasileiros não tolera marginais no seio de sua classe. Apesar das injustiças que lhes são perpetradas e dos obstáculos levantados para suas atividades, os médicos agem com coerência aos seus compromissos vocacionais, preservando a arte e ciência hipocrática, um patrimônio público e universal da humanidade, engajados com entusiasmo na luta por solidariedade, meritocracia e democracia. Nos últimos 10 anos, por condutas contrárias aos preceitos éticos que disciplinam as relações dos médicos com a indústria, laboratórios e a farmácia, o CFM cassou o direito de exercer a profissão de quase 30 médicos. Por uma melhor regulamentação dessas relações, a autarquia publicou, em 2010, uma resolução que veda ao médico o direito de exigir um único fornecedor ou marca de órteses, próteses e materiais implantáveis. Além disso, dentre outras iniciativas, o CFM solicitou, em 2012, ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Saúde Suplementar que procurassem fixar os preços dos materiais citados, o que seria exequível por meio de medida provisória ou projeto de lei.