Investigadores em consórcio europeu desenvolveram uma terapêutica para ajudar a prevenir complicações após transplantes de órgão sólidos como rins, coração ou pulmões. Os cientistas estão atualmente a desenvolver ensaios clínicos para um medicamento capaz de reduzir a inflamação do órgão doado após transplante.
Mais de 200 mil pessoas em todo o mundo estão atualmente à espera de um transplante de rim que lhes salve a vida, mas de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) apenas um quarto recebe anualmente um órgão doado.
Mas mesmo após o transplante, acontecem regularmente complicações como a Função Tardia do Enxerto (da sigla em inglês, DGF). A Função Tardia do Enxerto significa que o órgão transplantado não entra em funcionamento logo no início e por isso os pacientes necessitam de mais diálise durante alguns dias ou semanas.
A incidência da Função Tardia do Enxerto aumenta à medida que aumenta o período de tempo do órgão entre a colheita e o transplante, um período em que o órgão não é irrigado com sangue. Uma condição conhecida como lesão de reperfusão.
Jacques Pirenne é Chefe do Serviço de Cirurgia de Transplante Abdominal no Hospital Universitário de Leuven, na Bélgica e explica que «a Função Tardia do Enxerto é uma das complicações mais frequentes dos transplantes, entre 20% a 60%, dependendo do tipo de dador e isso é um problema porque o paciente precisa de se manter em diálise, o que não é bom para ele», dado ser «uma situação que prolonga a estadia no Hospital, o que financeiramente também não é bom». Para além disso, «o atraso no funcionamento tem um impacto negativo na sobrevivência do rim a longo prazo».
Os órgãos de dadores mortos são propícios à Função Tardia do Enxerto, que é uma inflamação que acontece após a reperfusão do sangue do enxerto implantado. Pode até levar à rejeição aguda e à falha do órgão.
«A incidência da Função Tardia do Enxerto é muito baixa quando se tem um dador morto padrão perfeito e é alta quando se tem um dador com idade ou um dador com história de problemas cardiovasculares e é verdadeiramente alta quando se tem um dador DCD – dadores que não estão em morte cerebral, mas que morrem devido a ataque cardíaco», explica Jacques Pirenne.
O especialista acrescenta que isto acontece «porque no ataque cardíaco existe um período de tempo durante o qual os rins não estão perfusados, não estão a receber oxigénio antes da intervenção, e por causa disso a incidência da Função Tardia do Enxerto é muito alta».
Investigadores e cientistas médicos do consórcio europeu MABSOT – Transplantação de órgãos sólidos de anticorpo monoclonal – testaram a uma nova molécula denominada por OPN-305 no tratamento para reduzir a inflamação do órgão doado após o transplante.
Um dos nove membros é o Hospital Universitário de Leuven, na Bélgica, onde Dirk Kuypers dirige o Departamento do Laboratório de Nefrologia. «A OPN-305 é uma proteína humanizada, uma proteína IgG-4, que está diretamente ativa contra um recetor – outra proteína dentro do enxerto denominada por TLR-recetor 2. Uma das moléculas chave que está envolvida na resposta inflamatória. Portanto, teoricamente, se conseguirmos bloqueá-la durante o tempo certo ao longo do transplante, poder-se-ão evitar algumas lesões e danos sérios no enxerto», explica Dirk Kuypers.
Gerda Kesters fez parte do primeiro estudo clinico com o OPN-305. Há dois meses recebeu uma injeção com o novo medicamento, pouco antes do transplante renal. A paciente afirma: «agora sinto-me bem. Posso fazer aquilo que eu quiser e é uma vida completamente nova. Vou celebrar o meu segundo aniversário este ano».
Antes do transplante, Gerda Kesters tinha de ir ao centro de diálise três vezes por semana durante quatro horas e tinha de seguir uma dieta restrita. «Comecei por não poder comer nenhum sal, nem quaisquer vegetais crus. Os vegetais que podemos comer devem ser cozinhados duas vezes. Nenhum doce, nenhum chocolate, nenhumas batatas fritas, nada. Porquê? Devido à pressão arterial. E não comer vegetais crus significa também nenhuma fruta devido ao potássio e ao fósforo», explica.
Quando os rins não funcionam, os produtos com resíduos solúveis na água não são desintegrados, acumulam-se e levam a uma intoxicação do corpo. Os rins são a estação de limpeza do nosso corpo: são eles que filtram os resíduos para fora do corpo. Todos os dias 1700 litros de sangue passam nos rins e se eles não funcionarem como devem, ficamos envenenados.
«O rim tem muitas funções mas a principal é que se livra de todo o tipo de resíduos no nosso corpo através do metabolismo. Portanto, os alimentos que consumimos, digerem-se e metabolizam-se, e todas as atividades que ocorrem diariamente – produzem resíduos e muitos desses resíduos são solúveis em água e são excretados do nosso corpo através dos nossos rins e os lípidos relacionados com os resíduos são principalmente metabolizados pelo fígado», explica Dirk Kuypers.
O especialista acrescenta que «para além disso, os nossos rins são também responsáveis por manter o equilíbrio de água e de sal, e depois para além disso, têm também alguma função endocrinológica, ou seja, funções hormonais que regulam outros sistemas no nosso corpo como o nosso esqueleto, a nossa médula óssea, entre outras coisas».
O novo medicamento foi desenvolvido na Opsona Therapeutics, em Dublim. Desde 2006 e ao longo de várias fases os investigadores da empresa desenvolveram o OPN-305. Antes do estudo clinico em pacientes transplantados, os cientistas avaliaram a eficácia e segurança pré-clínica do OPN-305 numa série de modelos e sujeitos.
Mary Reilly é a coordenadora do projeto do consórcio e líder do desenvolvimento clínico do OPN-305 e explica que o OPN-305 «é um anticorpo IgG4 humanizado e nós fizemos algumas alterações em termos da estrutura do anticorpo para o tornar mais humanizado».
Isto «porque um dos riscos que se corre quando se administra uma proteína humana em um paciente é que podemos construir anticorpos contra essa proteína. Pelo que quisemos produzir o anticorpo o mais humanizado possível para prevenir uma resposta imunitária do anticorpo».
Após a primeira parte do estudo clínico de transplante renal que envolveu 139 pacientes em trinta e seis centros de estudos clínicos na Europa e catorze nos EUA, o consórcio está à espera dos resultados antes de avançar para a parte B da fase II do estudo.
«Particularmente nos EUA existem cerca de 45% de rins descartáveis porque não têm a qualidade apropriada para serem usados no transplante. Pelo que, o que estamos a tentar fazer com o 305 é: queremos prevenir a Função Tardia do Enxerto (a inflamação no período pós transplante) e esperamos reduzir o número de rins descartáveis e na verdade fazer com que haja mais disponíveis», afirma Mary Reilly.
Se o estudo for bem-sucedido, no futuro a nova terapia poderá ser usada não apenas no transplante renal, mas também nos transplantes de coração, pulmão e outros órgão sólidos, que têm de lidar com um tipo de inflamação semelhante após o transplante.
Fonte: TV Ciência – 04/12/2014