O dia 18 de outubro foi escolhido para homenagear o médico em vários países desde o século XV. A escolha da data de forma tão unânime deve-se ao fato de ser esta data também dedicada a Lucas, médico em Antioquia, Turquia, mais ou menos na mesma época em que Jesus Cristo vagou pela Terra. Não foi um apóstolo, mas sua bondade e devoção aos pobres o tornaram figura especial para os católicos do mundo todo, chegando à condição de Santo dentro da igreja.
Desde aquela época e nas épocas que se seguiram até a modernidade, o trabalho dos médicos sempre foi muito respeitado, tal como nos dias atuais. Obras como “Médicos de homens e de almas”, de Taylor Caldwell; “O Físico” e “Xamã”, ambos de Noah Gordon; “A obra em negro” de Marguerite Yourcenar; e “A cidadela” de A.J. Cronin , são algumas que tive o prazer de ler e recomendar dentre tantas outras. Nestas, os médicos nos são apresentados como figuras repletas de intensidade, abnegação, bondade e dedicação à sua causa, ao seu mister, ao seu destino, e principalmente, ao seu paciente. Sumarizando, apresentam-nos figuras repletas de humanidade em seu sentido mais profundo, transitando entre a opulência e a miséria absoluta, entre a virtude e a corrupção, entre o frívolo e a necessidade absoluta.
Nossos antecessores guardiões do juramento de Hipócrates viviam conflitos não muito diferentes do que vivemos. O ser humano é o que é desde a sua criação. Minha questão central está na concepção de mundo que temos através da nossa profissão. Na forma como enxergarmos os aspectos mais relevantes de nossa prática através dos valores que deveriam se manter eternos e imemoriais.
Ser médico hoje em dia é diferente do que o eram nossos colegas no passado?
Estava lendo uma pesquisa encomendada pela Associação Paulista de Medicina acerca da satisfação dos usuários e de médicos com planos de saúde no Brasil. A íntegra da mesma pode ser acessada emhttp://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=24250:oito-em-cada-10-pacientes-tem-problemas-com-planos-de-saude&catid=3. Nessa pesquisa, são colocadas algumas conclusões, dentre as quais a que diz que 79% dos usuários que recorreram aos planos de saúde nos últimos 24 meses relataram problemas com os mesmos, de diversas naturezas. E que para 56% deles, os planos pressionam os médicos para reduzir o tempo de internação dos pacientes. Além disso, 60% dos usuários concordam que os planos pagam valores baixos por consultas ou procedimentos aos profissionais. Como se vê, a percepção do paciente que paga um plano de saúde não é muito diferente na essência quando comparada à visão do próprio profissional para com este intermediador de serviços de saúde comumente chamado de convênio.
Existem elementos em demasia para que conclusões simplistas sejam feitas acerca desse tema, mas lá no fundo, lá no fundo mesmo, a relação entre médicos e planos de saúde tem algo de patológico e hipócrita: trabalha-se por volume em detrimento da qualidade, fala-se mal dos convênios, mas não se vive sem eles; culpa-se a conjuntura e o “como deixamos chegar a este ponto”, mas ninguém dá um passo objetivo no sentido de quebrar essa condição de subserviência.
Pobre de nós! De forma unilateral e covarde aderimos a movimentos oficiais de paralização ao atendimento de usuários que tanto dependem deste atendimento. E muitas vezes o movimento é não oficial: segregando o usuário de plano de saúde na sua agenda, dedicando menos tempo e atenção ao mesmo, e, para piorar, cobrando valores adicionais em cima dos honorários previstos, sempre com a justificativa de que são mal remunerados. Dentro dos hospitais a assistência também não foge muito desta tônica: pacientes internados são conduzidos de forma apressada e menos trabalhosa possível para o profissional. Seja em função da sobrecarga de trabalho ou pura e simplesmente devido a uma visão distorcida do que vem a ser a condução de um paciente internado, os problemas ou são resolvidos da forma mais impessoal, cara e demorada, ou simplesmente não são resolvidos, engrossando as estatísticas de casos que poderiam ter um bom desfecho, mas não o foram. E, lamentavelmente, nenhum selo de Qualidade consegue reverter essa realidade se medidas duras e muitas vezes antipáticas não forem tomadas pelas nossas lideranças, cada vez mais carentes de carisma.
Afinal, para quem é direcionada nossa prática?
Penalizar o paciente é sempre mais fácil. E através de atitudes dessa natureza vamos mantendo as coisas sem as mudanças que, no escuro de nosso quarto, pensamos ser as mais corretas.
Uma manifestação do distanciamento entre o que deveria ser e não é pode ser ilustrada por manifestações de pseudo-preocupação com o paciente, que de forma tosca buscam o reconhecimento de enunciados filosóficos tão estéreis quanto a capacidade de autocrítica e visão de todo de uma parcela significativa de quem o preconiza, como o foi recentemente a movimentação em torno do Ato Médico. Para um monte de gente foi um passo tão mal disfarçado de defesa de território, travestido de urgência legal, que não valeu a pena comentar. Quanto se gastou de material publicitário, encontros com políticos e lobistas, impressos e correspondências, tempo de trabalho e tantas outras coisas que cercam uma proposta de abrangência nacional? E o que o paciente tem a ver com tudo isso? O que ele ganha? E mais: depois da poeira baixar, o que mudou com a não aprovação do documento?
A medicina é única, milenar, fortemente assentada sobre uma construção histórica e paradigmática, não tem necessidade de definição de campos de atuação nem de reflexões de ordem pragmática. Ela é o que é, e ponto. Sempre foi assim e sempre o será. Na prática, absolutamente nada mudou no dia a dia dos profissionais, das pessoas, das organizações. Os demais profissionais? Cada um tem o seu lugar e seus limites, sempre tiveram. E as pequenas disgressões polêmicas de parte a parte são insignificantes demais para merecerem tanta atenção. E um fato de ordem prática: o que muda na atenção e cuidado dos pacientes? Se não muda nada, então por que gastamos tanto tempo nessas discussões?
Em outro cenário, um exército de agentes com interesses distintos a todo o momento aproveita para desqualificar o SUS. Justo agora em que hospitais privados mais que nunca buscam o SUS como alternativa mais viável para a sustentabilidade de seu negócio. Na pesquisa acima mencionada, 30% dos usuários de planos de saúde no estado de São Paulo recorrem ao SUS para atendimento de suas demandas. A grande maioria certamente desconhece, assim como muitos pseudo-entendidos do assunto, que quando o Zé Gotinha aparece vacinando o filho do empresário, do político e do avesso às políticas públicas de saúde, é o SUS que está por trás de todo aquele investimento de abrangência nacional. E o SUS é a única alternativa para os 75% da população que não pode pagar um plano de saúde.
Minha percepção é que ser médico hoje em dia é muito mais simples do que se possa imaginar. Arrisco dizer que basta ser aquilo que desde o princípio dos tempos foi construído como qualificação basilar: respeito profundo pelo ser humano aos seus cuidados, dedicando a ele sua atenção e toda a sua capacidade profissional.
Complicado mesmo é ser paciente em nosso país, em que tanto nas filas do SUS quanto nos consultórios com revista Caras na recepção são tratados de forma tantas vezes desrespeitosa.
Dia 18 de outubro não quero nenhuma homenagem especial. Quero homenagear o paciente. Nós não vivemos um momento complicado. Quem vive um momento complicado, como sempre, é esse povo que, não bastassem as vicissitudes do cotidiano, ainda precisam encarar um dilema que não é dele.
Nesse dia, quero ser só médico.
Fonte: Saúde Web – 21/10/2013